domingo, 28 de agosto de 2016

Homenagem ao meu irmão

Bomber: https://www.facebook.com/murilo.rosendo.3?fref=ts

Sabia que aquele dia chegaria, era inevitável. Tentara retardar ao máximo, dava as mais variadas desculpas e trocava o assunto de modo astuto apenas pra se conter em revelar algo dessa natureza. Era, enfim, o fátidico dia em que não poderia mais fugir.
Seu filho era um menino de estatura baixa e corpo atlético, um rosto recoberto por uma penugem rala, típica da juventude, mas cultivada com orgulho. Os óculos escondiam os olhos castanho-escuro cheios de vitalidade e energia. O garoto havia crescido à semelhança do pai, mas sem saber que trilhava um caminho muito maior por vir. Ainda amadurecendo, como todos os jovens que entram no mundo adulto, ele dava os primeiros passos rumo à seu próprio destino na faculdade. Curiosamente, e sem tomar conhecimento, seguia os passos de seu pai, que caminhara naquele mesmo campus havia pouco menos de três décadas.
Naquele dia estava sentado ao lado do pai, ambos engajados no hábito corriqueiro da velha cachimbada. Por coincidência, ou ocasião do destino, escolheram para o momento Captain Black Dark, um excelente fumo a base de ervas Black Cavendish aromatizado com toques de chocolate, café e baunilha. Harmonizaram com um excelente Glenfiddich 12 Anos Special Reserve servido em copos com duas pedras de gelo para o filho, nada para o pai.
Aquele era um hábito típico entre eles, quase um ritual de ligação entre os dois. O filho lembrava dos mais variados amigos que estiveram naquelas cadeiras e deram risadas com eles, sempre acompanhados de uma boa escolha de tabaco e um bom whiskey. Ele cresceu naquele meio, vendo o pai e seus amigos conversarem sobre os tempos de mocidade e lembrando das grandes aventuras, dos amigos queridos que não estavam mais ali, e dos momentos mais marcantes que enraizaram os laços de amizade e confiança.
Mas aquele dia era diferente, o garoto não era mais um menino. Recebera o convite para entrar na faculdade na noite anterior, um presente mais do que especial para comemorar seu aniversário de 18 anos. Naquele dia estava sentado com seu querido pai, vendo ele ensiná-lo à cuidar bem do seu novo presente: um cachimbo Peterson Churchwarden D15, feito de raíz de sarça-ardente. Um cachimbo magnífico, com a piteira alongada e um bocal largo, tinha o acabamento envernizado e inteirinho trabalhado à mão. Uma peça singular, para um momento singular.
Acendeu o cachimbo enquanto tomava um gole do magnífico whiskey, saboreando aquele primeiro instante de grande intimidade com seu pai. Ele percebeu o relaxamento do pai, e entendeu que aquele poderia ser o melhor momento pra falar o que sentia:
“Pai, muito obrigado por isso, por me deixar entrar no seu hábito e entender um pouco mais como você é. Sinto como se fizesse parte de um seleto grupo que tem aventuras incríveis e histórias memoráveis. Sentado aqui, estou lembrando de quando me contava as histórias do seu momento de faculdade, pensando que gostaria ter as minhas próprias aventuras quando chegar lá, e poder ter meus próprios amigos, como você tem ao Daniel, ao Gustavo, à Rosa, ao Renan, à Júlia, ao Lucas, o Rodrigo, e à tantos outros.
Mas confesso que sempre fiquei curioso com um de seus amigos, pai. Pra ser mais específico, estou falando do meu xará, seu amigo Murilo. Quando você conversa com o Rodrigo  e o Renan sobre ele, sempre mantém um tom baixo, e tenho que admitir ter ouvido um ou outro fungado do lado de fora da sua porta quando eles vão embora e as luzes se apagam.
Você nunca me contou nada sobre ele, mas não é só isso. Você também não me respondeu todas as vezes que perguntei porque escolheu esse nome, Murilo, pra mim. Infelizmente sou seu filho, assim tenho algum miolo nessa cabeça semi-oca. Quer me contar agora, antes de eu começar essa longa e maravilhosa jornada que vai me tornar alguém neste mundo?”
O pai ficou se remexendo na cadeira, o cachimbo semi-apagado pendendo pelo lábio. Demorou alguns momentos até que se movesse, a mão tateando em busca do copo à sua frente. Depois de molhar os lábios e se endireitar na cadeira, voltou os olhos para o filho. Examinou seu maior tesouro e orgulho, com toda cautela, atentando para cada novo detalhe em sua feição e conduta. Percebeu, com enorme espanto, que estava diante de um homem, não mais aquele garoto que ele criou e cuidou com tanto afeto e carinho. Um homem que ele passaria à respeitar e a ter muito mais orgulho, ainda mais se tivesse uma bola de cristal para ver o futuro.
Com tudo isso em mente, acendeu seu velho cachimbo Montana 26 curvado, uma relíquia dos tempos de faculdade. Aquele fumo queimava lentamente, o aroma do Captain Black Original  exalando na fumaça que preenchia a sala. A forma como o pai fumava aquele cachimbo dava a impressão que não escolhia as baforadas do cachimbo, mas as próximas palavras que diria à seu estimado filho, plenamente consciente dos efeitos que ocasionariam nele e que mudariam o verdadeiro núcleo do seu amado tesouro. Por fim, com a voz embargada, começou a narrativa:
“Murilo, meu querido filho. Acho que nunca lhe disse isso, mas você é esperto demais pra sua idade, com certeza. Como você sabiamente concluiu, seu nome veio em homenagem ao meu grande amigo e irmão, Murilo Rosendo.
Conheci meu irmão de consideração ainda no primeiro ano de faculdade. Na época, eu acabara de ser admitido nos quadros da empresa júnior da faculdade como trainee da Diretoria Administrativo-Financeira, que era liderada por uma das melhores mulheres que tive o prazer e a honra de conhecer. Aquele ano foi repleto de aprendizados e aventuras, como você bem sabe.
Mas não foi dentro da empresa que conheci meu estimado irmão, ao contrário, foi a pista de atletismo que nos introduziu, assim foi a forma como o destino escolheu nos unir. Eu havia entrado há pouco para o time de atletismo por convite de outro grande colega, e o Murilo se juntou ao grupo no final do mesmo ano. Treinamos, corremos, disputamos provas e competimos juntos, na maioria das vezes um contra o outro.
Meu irmão era uma pessoa muito rápida na pista, parecia Usain Bolt, quando largava ninguém era capaz de alcançá-lo. Nos treinos ele fazia o máximo pra que essa diferença não ficasse evidente, embora todos do grupo concordavam que seu talento e liderança eram naturais e muito acima da média. Encontramos no esporte nosso ponto em comum muito antes de saber que veríamos muitos outros aspectos semelhantes em nossas jornadas, coisas que nossos caminhos nos reservaram com cuidado.
No segundo ano de faculdade tive o imenso prazer de recepcionar meu irmão na empresa júnior. Fiquei muito feliz quando descobri que havia sido alocado como seu mentor no primeiro trabalho dentro da diretoria. Algo já me dizia, logo no primeiro momento, que teríamos muito mais à compartilhar do que o ambiente profissional jamais proporcionaria.
Eu não estava enganado, nos tornamos uma equipe formidável! Confesso que aprendi muito mais do que ensinei à ele. No início eu acabei produzindo a maioria dos trabalhos tendo o auxílio dele, mas, com o tempo, o processo se inverteu. No entanto, jamais poderia ter imaginado a carga de ensinamentos reais sobre a vida, o cotidiano, as relações interpessoais e os valores que carregamos, todos aprendizados que ele me transmitiu naquele ano em que trabalhamos muito próximos. Durante este período selamos a amizade que definiria nossos caminhos mais adiante.
No final do segundo ano eu já considerava o Murilo como um irmão. Ele sabia de mais segredos do que a grande maioria dos meus amigos daquela época, e distribuía os mais sábios conselhos. O que diferenciava-o dos demais era sua capacidade de ter calma e tranquilidade em momentos de extrema pressão, sempre oferecendo sugestões plausíveis e flexíveis para o grupo, ou mesmo pra mim em assuntos pessoais.
As conversas sobre a origem do universo, os motivos e a moral que nós carregamos dentre de nós mesmos, os valores que podemos repassar para as próximas gerações e os ensinamentos que podemos colher dos nossos antepassados foram alguns exemplos da vastidão de assuntos que permeava nossos papos. Poderíamos ficar na sala de reuniões conversando por horas à fio, como fizemos inúmeras vezes, guardando belos registros do que nossas mentes haviam produzido de todos aqueles momentos únicos.
Nessas conversas meu irmão me ensinou o maior valor que carrego quando o assunto é relacionamento interpessoal. Dizia ele, em um diálogo particularmente longo que envolveu alguns assuntos espinhosos da conduta de nossos colegas: ‘Olha Pedro, não sei se concordo com isso de que precisamos ter amigos e inimigos, porque sempre vi meus inimigos como adversários. Aprendi que é mais interessante, para mim e para eles, que eu tente amá-los e respeitá-los mais do que amo e respeito meus próprios amigos e familiares. Em outras palavras, se eu tratá-los como eles me tratam, não só serei igual à eles, como não farei nada para mudar este cenário.’
Esse era seu jeito, em poucas palavras dizia tudo. Era uma pessoa espetacular, que tinha um coração absolutamente incrível. Arrisco dizer que aprendi mais com ele, uma pessoa relativamente mais nova do que eu, do que com muitos senhores que se diziam grandes sábios. Aquela amizade havia se tornado algo que eu cultivaria e que definiria minhas próprias ações, sem eu tomar conhecimento disso na ocasião. Eu já sentia que não queria perder aquele irmão, não importava com o preço que precisasse pagar.
Infelizmente o destino decidiu que seria diferente. Já no terceiro ano nossos caminhos começaram a se separar, inicialmente quando ele se tornou gerente de projetos, e depois quando eu decidi sair da empresa no final do ano. Porém, isso não foi suficiente pra afastar nossa amizade. Aproveitamos todas as oportunidades que tivemos, por menor que fossem, para ao menos colocar a conversa em dia e continuar fazendo parte da vida cotidiana um do outro.
Na metade do último ano, à menos de 8 meses da formatura, tudo mudou. Ele fazia parte de uma equipe de projeto da empresa que precisou realizar um trabalho de pesquisa em outro estado, e tomaram a estrada em uma noite de sexta-feira. Nunca poderia imaginar que aquele dia seria o último em que veria meu estimado irmão. No trajeto houve um trágico acidente envolvendo o carro dele. Infelizmente meu irmão e outro colega de trabalho, Luiz Eduardo Bossolan, não estavam mais entre nós.
Naquele momento, e nas semanas seguintes, eu senti o chão desmoronar aos meus pés. Era como se tivesse me jogado em um abismo muito profundo, um misto de saudade, de solidão e de culpa. Saudade do meu irmão com quem eu não conversaria mais, não daria mais risadas. Solidão pelo vazio que ele deixou no meu coração, pela cicatriz profunda que ele fez durante nosso pequeno tempo de convivência, o quanto ele foi e é importante para mim. E culpa por ter perdido essa corrida, a única corrida que eu prometi ganhar dele. Havíamos combinado que eu ia tentar ganhar a corrida da vida, mas é claro que ele tinha de vencer. Meu irmão era um talento raro, um atleta nato, um ser humano inesquecível, uma alma única, inestimável e insubstituível!
               É por conta de tudo isso, meu querido filho, que o batizei em homenagem ao Murilo. Seu nome é pela sua sabedoria, pelo seu caráter, pela sua estima e pela sua vontade em ajudar o próximo. Acima de tudo, seu nome é Murilo pra representar o ser-humano magnífico que te protege, a alma que hoje olha por você e por todos nós, nos guiando em nossas conquistas, alegrias e realizações.”

domingo, 31 de julho de 2016

Uma Tarde no Parque

Créditos: MARY YAMANAKA - Parque do Ibirapuera  1996 (http://mary-yamanaka.blogspot.com.br/2012/01/pintando-do-natural.html)
Um sol maravilhoso irradiava no azul-celeste, iluminando as folhas das árvores e os passeios tortuosos daquele parque, um local de retiro na periferia da cidade movimentada. O pequeno Evols estava sentado no banco rústico de madeira, em uma das praças laterais, apreciando as regalias que estavam no seu colo: um pequeno caderno, uma caneta e uma caixa de madeira em formato de cubo.
Evols abriu a caixa e contemplou o interior, um largo sorriso cruzou sua face ao examinar a  estimada coleção. Haviam verdadeiras raridades naquele pequeno cubículo, valiosas por sua simplicidade e pelo seu poder de influência. O pequeno caderno estava aberto na página de tabulação, um senso de orgulho correndo a espinha até atingir a mente de Evols ao observar o conteúdo de cada ítem ali descrito.
Enquanto estava distraído com os espólios, Evols não reparou que o sorrateiro Quaetilium aproximou-se e sentou à sua esquerda. Chocado com a aparição repentina, Evols fechou apressadamente sua caixa, guardando de qualquer modo o caderno e a caneta em seu interior, e mirou Quaetilium com um olhar de pura perplexidade.
Quaetilium, então, indagou:
- Caro Evols, perdoe a intromissão, vi que estava contemplando admirado esta pequena caixa e fiquei curioso, o que carrega nela?
Antes que Evols pudesse sequer falar as primeiras palavras, Resposinius, o ancião, sentou-se à sua direita e prontamente explanou:
- Ora, pequeno Quaetilium, é claro que trata-se de uma coleção, e das mais preciosas!
- Uma coleção?! Pudera, também sou um colecionador aficionado! Mas diga-me, o que guarda com tanta estima? – indagou Quaetilium.
- Só há uma coisa que se possa colecionar, acima de qualquer outra, é um senso comum: respostas, obviamente! – devolveu, Responsinius de modo assertivo.
Quaetilium, que até aquele momento estava muito animado, desinflou como um balão perfurado por um alfinete. Apenas murmurou: “Ah... respostas. Que legal, bom pro senhor, imagino.”
Evols percebeu que Responsinius não tomou aquela reação com bons olhos. Imperativamente, o ancião ordenou uma explicação: “Como assim, ‘ah...respostas.’?! Está querendo inferir que existe algo melhor para se guardar do que respostas?”
- Respostas são úteis, mas o que guardo à sete chaves são perguntas! – completou Quaetilium.
- Perguntas?! – respondeu um Responsinius aborrecido.            
- Sim, perguntas! Veja, não tenho nada contra respostas, mas nunca trocaria uma pergunta por uma resposta... Não consigo ver o ganho à longo prazo. – explicou Quaetilium.
- Como assim, longo prazo? O que quer dizer? – questionou Responsinius.
“Bom...
Da forma como vejo, respostas são úteis para se ter ao redor, mas também são um pouco tediosas... Quero dizer, elas não parecem participar da eterna dança de transformação do universo, na forma como são. Se você escolher ficar ao lado delas, arriscará perder boa parte das risadas e da graça.
A realidade pode mudar tanto quanto você quiser que ela mude, ou melhor, tanto quanto você escolha vê-la de modo diferente. Uma resposta, estática em sua natureza, faz referência a um momento congelado da realidade. Seu valor só pode ir para baixo. O diamante de hoje pode ser o grafite de amanhã.
Por outro lado, perguntas tem a curiosa característica de continuar nessa dança e, assim, seu valor só tende a aumentar com o passar do tempo. Parece não fazer muito sentido colecionar qualquer coisa que possa perder seu valor com o passar do tempo, não acha?” explicou e indagou Quaetilium, que estava absolutamente eufórico neste momento.
Responsinius tomou um pouco de ar, retornando: “Acredito que ideias tão radicais como essas são parte de uma característica intrínseca à jovens como você, jovem Quaetilium. Como seria possível manter uma coleção destas?!
Quero dizer, é senso comum que perguntas estão sempre correndo para encontrar respostas. Todos sabem que elas raramente sobrevivem ao encontro. As respostas dão base para qualquer nascimento de uma pergunta, são os progenitores da nova geração.
Quanto maior o número de perguntas que uma resposta gera, maior será o seu valor, isso é um caso de lógica básica que falta à juventude hoje. Para se ter o mínimo de assertividade é necessário ter um leque de respostas bem estruturadas, com muita experiência, bem alimentadas e nutridas.
 Você diz que as respostas são um momento estático, mas e o que dizer das perguntas, então? Elas são feitas em um único momento, e se, por fim, se alteram, você não pode dizer que continuam as mesmas, especialmente após várias revisões.
Assim, fica claro pra mim que a melhor coleção à se ter é aquela em que você pode ter base. Como em um edifício, escolho ter pilastras à pisos, e construir os andares com estas fracas, mas bem rodadas, pernas.” completou um triunfante Responsinius, crente de que tinha ganho aquele argumento.
Após algum tempo de reflexão, Evols esperava, ansiosamente, uma indicação de reação por parte de Quaetilium. Em silêncio, aproveitou o momento de pausa para organizar os pensamentos, sendo surpreendido pela fala de jovem sorrateiro:
“Na minha visão, quando uma resposta não serve mais à sua pergunta, ela deve ser descartada, e não entesourada. É apenas o ciclo-de-vida natural delas. Elas geralmente esperneiam e fazem um escândalo quando pedimos para irem embora, especialmente aquelas que ficaram conosco por um longo tempo.
Veja você, estas respostas acabam se sentindo muito importantes com o passar do tempo, ficam cheias de si! Não repeitam ninguém, nem mesmo as perguntas que as originaram! Qual o propósito em manter uma resposta errada se ela vai impedir de se retornar à uma pergunta certa?” considerou Quaetilium, quase que jogando a pergunta ao ar e não propriamente naquele pequeno diálogo.
Responsinius se levantou, voltou-se para os dois jovens colegas que estavam sentados no banco de parque, em meio à tarde ensolarada, e disse-lhes: “Para mim, basta... Já ouvi o suficiente desta juventude rebelde. Tenham um bom dia!”
Evols e Quaetilium se entreolharam, a dúvida estampada nas faces, e permaneceram no banco, em silêncio, por alguns instantes. Quando o sino da igreja ao lado sinalizou o fim de tarde, Quaetilium se despediu e seguiu seu rumo.

Evols demorou-se ainda no banco, os pensamentos absortos na conversa que havia presenciado. De repente, como que por passe de mágica, um estalo veio em sua mente, trazendo consigo a demonstração de como aqueles dois colegas poderiam ter unido esforços, ao invés de vê-los em pontos opostos. Na consciência de Evols, tudo fazia sentido:
“Respostas são extremamente valiosas, porque garantem um ponto-zero, uma referência para o próximo objetivo na árdua jornada. Mas para chegar ao próximo passo é necessário realizar perguntas em cima da resposta-base, do contrário tudo que fará é permanecer congelado no mesmo lugar.
O ciclo do desenvolvimento ficou muito claro agora. As perguntas tem maior valor para um objetivo em mente, enquanto as respostas servem de base para alcançar este objetivo. Ao mesmo tempo, o objetivo, quando alcançado, se torna a nova base de resposta para as próximas etapas, ou seja, as próximas perguntas.
Este ciclo é o que uniria Quaetilium e Responsinius. Um ciclo de perguntas e respostas contínuo, onde um aprende com as descobertas e indagações do outro, em eterna sincronia, crescendo e se desenvolvendo conjuntamente.”

Evols abriu a caixinha em seu colo, tirou o caderno e a caneta, e anetou numa página em branco aquele maravilhoso ensinamento. Guardou sua coleção de ações dentro da caixinha: seu valioso tesouro ganhara um novo membro.

domingo, 24 de julho de 2016

O Caminho da Resiliência

Créditos: Nyctimene (http://nyctimene.deviantart.com/art/The-Phoenix-Project-Egyptian-Bennu-Bird-555321504)

Pulava de galho em galho, tentando fugir de seus perseguidores. Olhava para trás, o suor descendo pela testa, prontamente transformando-se em vapor, misturando-se ao rastro de poeira que deixava. Tentava agitar aquelas asas desengonçadas, as minúsculas patas apalpando os nódulos das árvores, afim de ganhar distância e uma janela pra refresco. “Já estou longe”, Simurg pensou, julgando ser um bom momento para uma pausa sobre uma antiga tamareira.
O descanso durou poucos segundos, a tamareira não foi capaz de suportar o peso de Simurg e rachou, fazendo suas patas quase tocarem a areia desértica. Em imensa agonia, conseguiu prender o bico a outra tamareira próxima, o suficiente para ganhar impulso em direção ao céu. Atingiu poucos centímetros de altura antes de sentir um puxão forte nas caudas, a esperança minguando naquele segundo.Viu, desolado, a abóboda celeste  ficar cada vez mais distante, até sua imagem ficar recortada por frias barras metálicas. Tudo estava acabado, fora enjaulado.
No porão ao qual estava aprisionado pode rever toda aquela sequência maluca de acontecimentos. Pensou na sua infância, nos momentos vividos com seu meio-irmão Grypus, desde as confissões particulares até as aventuras em grupo. Por algum motivo que não conseguia entender, Grypus sempre vira Sigmur como um ser inferior, muito embora tenham sido criados no mesmo lar. Em parte, havia uma certa lógica na visão de Grypus, uma vez que Sigmur fora adotado pela família de Grypus quando ainda era uma pequena ave. Haviam tomado aquela atitude por pensarem que fosse um órfão de alguma família de Bennus ao redor, amargando a decepção quando o pequeno Sigmur crescera.
Claramente havia algo que diferenciava Sigmur de seus parentes e colegas. Os Bennus eram pássaros elegantes, com corpo similar ao dos flamingos, as penas semelhantes às de um pavão com tonalidade azulada em um lindo degradê que terminava na cabeça. Acima do bico, uma faixa preta recobria triangularmente os olhos, dando um aspecto feroz e intimidador àquelas magníficas criaturas.
Sigmur, por outro lado, era bem diferente. Quando pequeno, possuía características muito semelhantes aos seus meio-parentes, com a diferença de ter quatro caudas ao invés de uma única, e de seu  corpo ter uma coloração rosa salmonada, mais próxima de um flamingo do que de um Bennu. Fora alvo de brincadeiras maldosas por parte de seus semelhantes, especialmente seu irmão Grypus, cujo passatempo favorito na infância fora caçoar e mal-tratar Sigmur.
Mesmo recebendo esse tratamento, Sigmur era incrivelmente fiel ao seu meio-irmão e sua família adotiva, bem como seus semelhantes. Não era dos mais habilidosos, mas seu ímpeto, sua determinação em ajudar como pudesse e sua lealdade eram diferenciadas mesmo entre os Bennus, conferindo os principais traços da personalidade de Sigmur.
Não por acaso, agora percebia, ele estava naquela enrascada devido à sua lealdade ao meio-irmão. Havia executado o plano de Grypus à risca, mantendo as esperanças de que suas ações gerassem o retorno do fogo aos Bennus, mas fora atraído para uma arapuca. Antes que pudesse sequer se aproximar de seu objetivo, alcançar o fabuloso farol de Yggdrasil, considerado o berço do reino e restrito aos membros da família real, fora interceptado por enviados da guarda Bennu. Agora aprisionado e em solidão, Sigmur via a esperança esvair de seu coração com a aproximação de seu julgamento.
Seus piores pesadelos se confirmaram ao receber a sentença de Sua Alteza Bennu, estava permanentemente exilado. Relegado à se contentar com a própria sorte, Sigmur vagou indefinidamente pela imensidão do deserto. Desnutrido e desolado, andava sem rumo e sem prumo, buscando um novo motivo para sua existência. Por conta de seu caminhar descuidado, foi engolido por um buraco na areia, caindo na escuridão abaixo. Estranhou a sensação em suas patas, com certeza estava em momento de confusão mental, pois sentia galhos e folhas. Em um sopro de esperança, torceu as garras e conseguiu parar a queda-livre, permanecendo de ponta-cabeça enquanto a areia torrenciava túnel abaixo.
Quando olhou ao redor, o coração acelerou e o sangue começou a fluir velozmente. Não poderia ser verdade, estava sonhando, definitivamente. Não conseguia acreditar no que seus olhos revelavam, um misto de confusão, incerteza, medo e esperança rodeavam seu coração e mente.
À sua frente estava uma caverna imensa, o chão recoberto por árvores com troncos fortes e baixa estatura, as copas fazendo um lindo tapete verde-musgo no piso. As paredes eram de pedra bruta bem escuras, adornadas de imagens e pinturas incríveis. Mais inacreditável era o conteúdo destas imagens.
Sigmur observou a sequência de imagens à sua frente que descreviam claramente toda a vida de uma ave idêntica à Sigmur. Não era um Bennu típico, pois tinha a coloração rosada de Sigmur, a baixa estatura, e a cauda dividida em quatro pontas. Sigmur viu aquilo que assumiu como um parente sair de uma nuvem de poeira, empoleirado nas árvores, e transportando muitos objetos de uma única vez, algo que espantou Sigmur (achava que era muito fraco, embora fosse um dos encarregados no transporte de mantimentos para os Bennus).
As duas imagens ao fim assustaram Sigmur. Na primeira estava seu semelhante à frente do farol de Yggdrasil com a cabeça sobre o farolete, mas não conseguia distinguir exatamente o que ele fazia. Na imagem seguinte, o farol estava aceso e seu semelhante novamente envolto em poeira. Sigmur observou algumas ranhuras na lateral da última ilustração e agitou as asas para poder limpar a grossa camada de poeira. Se impressionou ao perceber que era a seguinte frase: “A felicidade está em cada uma das suas ações, e pode ser encontrada nas horas mais escuras. Para isso, basta lembrar de acender uma luz.”
                -
          No saguão principal do palácio real encontravam-se Grypus e seus asseclas, que ocupavam-se com um fabuloso banquete. A comemoração tinha por mérito a tomada do controle das pirâmides reais e dos campos de plantio, um golpe engenhoso tramado pelo próprio Grypus (usara a escuridão para movimentar suas tropas e tomar o palácio de assalto). Sem a dádiva do fogo iluminando o farol, o poder real (que emanava da luz e do calor) estava para ser extinto. Grypus aproveitara o momento de fraqueza e tomara o controle do reino, garantindo amplos poderes à si e seus seguidores. O reino estava mergulhado no medo e na falta de esperança, sem vislumbrar uma saída para aquela situação calamitosa.
         Neste momento de desespero, Anka, uma pequena Bennu, mirou o céu orando por um milagre. Qual não foi sua surpresa ao avistar uma luz avermelhada no horizonte obscuro, que foi se tornando cada vez mais intensa até se transformar em uma ave impetuosa jamais vista por Anka. Suas patas eram mais curtas do que as de um Bennu, tinha penugem de águia com tonalidade vermelho-dourada e quatro caudas alongadas. Todo seu corpo estava envolto em  chamas ardentes.
        A criatura majestosa se empoleirou na tamareira mais próxima, suas chamas diminuíram de intensidade, de modo que Anka pode contemplar seu rosto. Não conseguia acreditar no que via, não era possível! Era Sigmur, mas estava muito diferente do Sigmur que conhecia. Estava, se é que isso era possível, mais intenso, mais impetuoso, mais vivo.
        Sigmur acenou para a pequena Bennu, abriu suas magníficas asas e decolou em direção ao farol de Yggdrasil. Anka observou Sigmur se empoleirar no topo do farol, mas não conseguiu ver o que fazia lá. Quando Sigmur se afastou, uma chama vibrante saia da ponta do farol, cobrindo o palácio, as pirâmides e o reino com uma luz resplandecente. Anka também viu, em completo espanto, quando Sigmur entrou no palácio real e, pouco depois, retornou acompanhado dos aliados de Grypus, que carregavam seu líder amarrado e amordaçado. Mas o momento de maior incredulidade veio quando, em uma demonstração inigualável de valor, Sigmur perdoou Grypus e libertou-o, com autorização do poder real.
        Em uma reviravolta inacreditável, Sigmur havia reacendido a chama da esperança no reino ao mesmo tempo em que conquistara a confiança de seus antigos perseguidores e algozes. Grypus se aproximou de Sigmur, o embaraço e a culpa estampados na face, olhando o irmão com orgulho. Finalmente, declarou com voz embargada:

        “Agora posso perceber meu maior erro, querido irmão. Finalmente vejo que as circunstâncias do nascimento de um ser são irrelevantes. Pouco importa onde, como ou de que forma se entra neste misterioso mundo. Por outro lado, o que escolhemos fazer com o dom da vida determina quem somos de fato."     

domingo, 3 de julho de 2016

Realidade Cinzenta

O alçapão estava entreaberto, ergueu-o com facilidade escorregando pela fresta aparente, e entrou na adega. Os olhos de Visus inundaram-se em êxtase no mesmo segundo que confirmaram o prêmio adquirido: uma adega inteira de vinhos espetaculares para degustar completamente à vontade. E o melhor, como era o costume entre os minúsculos Clurichauns:  Visus iria desfrutar daquele banquete absolutamente só. Mal conseguia conter a alegria naquele momento!
Com os olhos ainda turvos, saltitou entre os toneis cinzentos de modo a escolher as primeiras vítimas e, como de costume, perdeu o interesse em fazer jogos mentais rapidamente, atacando ferozmente a barrica a sua frente. O vinho escoava pela torneira e alcançava a boca ansiosa de Visus antes de tocar o solo, o líquido cinza claro refletido pela luz prata que pairava pelo pequeno alçapão.
A felicidade enchia a mente de Visus à medida que sua pequena barriga inflava com o líquido armazenado, um dos efeitos colaterais odiáveis daquela experiência rotineira. Visus lutou com todas as forças para suportar a enxurrada de hormônios que tomou conta de seu cérebro, vislumbrando os efeitos maravilhosos que sentiria em alguns minutos (fizera questão de manter um jejum de água apenas para potencializar os efeitos maravilhosos do elixir etílico).
Por fim, a felicidade deu lugar à esperada dor de cabeça, a sensação de borboletas voando no estômago, o gosto amargo na língua. Visus estava no paraíso, sua visão enrolava e acinzentava à medida que os efeitos ficavam mais intensos.
Depois do que pareciam horas de dores maravilhosas, enjôos dignos de travessias oceânicas e um pouco de sono (outro contratempo detestável dessa experiência), Visus recobrou a consciência e olhou em sua volta, tentando reconhecer o local onde estava.
O chumbo da madeira dos suportes contrastava com os toneis cinzentos e com o cinza claro do vinho derramado no chão, criando uma imagem conhecida ao pequeno Clurichaun, o mundo cinzento ao qual estava habituado. Pode constatar que estava na velha adega do senhor Otis, algo que aumentou seu mal-humor típico, pois sabia que os vinhos daquele velho Leprechaun eram da pior qualidade. Levantou-se com dificuldade e conseguiu sair do alçapão, apenas para dar de cara com o velho Otis e seu sobrinho, Oculus. Visus conhecia Oculus de vista, mas nunca havia ficado cara-a-cara com seu meio-primo, e não gostou da primeira imagem que teve de seu meio-parente.
Diferente de Visus, Oculus era um Leprechaun. Era mais baixo do que Visus (media algo em torno de 50cm), tinha um porte atlético e exibia um sorriso escandalosamente sincero, algo que irritava profundamente Visus e seus companheiros Clurichauns. Oculus trazia um cachimbo cinza chumbo pendurado nos lábios, vestia uma jaqueta cinza claro de couro e sapatos com fivelas, além de um horripilante chapéu de ponta prateado, também afivelado. Aquela indumentária causou antipatia e desgosto à Visus, piorando seu julgamento de seu meio-primo.
Como era de costume, Visus estava perdido em pensamentos acinzentados enquanto o velho Otis ralhava com ele e seu meio-primo Oculus o observava inquieto. Após muitas lições não ouvidas, palavras jogadas ao vento e algumas ameaças físicas, Visus viu-se livre da horrível presença do velho Otis, permanecendo aprisionado ao seu meio-primo, que passou a segui-lo e a observar atentamente suas ações.
Para tentar se desvencilhar de Oculus, Visus empregou a principal tática dos Clurichauns: reclamar sobre os grandes feitos dos Leprechauns. Era uma arma poderosa, afinal, poderia se encontrar defeito em todas as ações daqueles Leprechauns alegremente estúpidos, desde uma simples colheita de trevos até a principal atividade da vila, a caça aos tesouros. Visus sempre achara aquela atividade, em particular, extremamente monótona, visto que os pequenos Leprechauns empenhavam meses de trabalho para garantir um pequeno saco com moedas prateadas.
As reclamações sobre os grandes feitos deram lugar às indagações sobre o cotidiano. Visus atacava ferozmente aqueles simpáticos seres, a ira e o desprezo misturados nas palavras ácidas que ele proferia à Oculus, ridicularizando a forma alegre e viva que seus meio-parentes tinham de encarar aquela existência vazia.
Depararam-se com duas Leprechauns brincando com seus potes dourados. Visus comentou: “Veja Oculus, esses dois seres insignificantes trabalhando conjuntamente. Vê-se que se encontram em estado de euforia plena, como se nada mais importasse além dos estúpidos utensílios em suas minúsculas mãos. Aquela vestida de branco parece mais alegre, apenas se importando em observar sua amiga aventurar-se entra essas pedras, seu longo vestido negro esvoaçando por aí. Como algo minimamente bom pode sair dessa interação?!”
À princípio, Oculus achou aquele comentário muito estranho. Ele via as meninas cheias de vivacidade, em suas vestimentas tradicionais de Leprechaun, utilizando seu precioso tempo para realizarem as atividades primorosas que somente aquela idade poderia proporcionar. Virando-se para Visus, disse-lhe: “Querido parente, por favor, observe atentamente esta cena.”
Visus voltou-se para aqueles seres minúsculos, o tédio misturado ao desprezo corriam sua mente e seu instinto. Fez esforço para focar na atividade insignificante daquelas criaturas, apenas para ser cruelmente surpreendido: a Leprechaun de preto começou a retirar moedas de prata do pote de sua colega. Ao invés de retribuir tal ação com mesma intensidade, a colega de branco levantou-se calmamente, colocando-se entre sua amiga e seu valioso tesouro. Em seguida, argumentou com sua igual que aquela atitude não era aceitável, e demonstrou o sentimento gerado através de poucas palavras, poderosas mensagens.
Sua colega de preto assentiu por cada argumento, a feição sendo transformada por cada palavra, passando da ganancia e da soberba para a redenção e a compaixão. Humildemente devolveu as moedas de prata, apenas para ser recebida com um largo sorriso e um abraço sincero.
Algo na mente de Visus estava errado, aquilo era inconcebível! Como uma criatura pode abrir mão da maravilhosa solidão e da possessão para ter um simples sorriso de volta? Qual foi o ganho que aquela Leprechaun teve? Externou este último comentário à Oculus, tendo como resposta a seguinte frase: “É necessária muita coragem para se contrapor à seus inimigos, mas é necessária ainda mais coragem para se contrapor aos seus amigos.”
Foi como se uma erupção de emoções tivesse estourado na mente de Visus, todas agonizantemente felizes e encantadoras. Inicialmente Visus fez um esforço hercúleo pra não dar atenção àquele mar de sentimentos, mas foi vencido ao abrir os olhos.
Visus não acreditava no que via, era absurdamente louco demais para sua mente. Via algo mais do que o mundo cinzento que sempre o cercou. Era loucura, sabia, afinal aquele mundo sempre fora composto por um degradê cinzento. Mas aquela cena marcou-o profundamente, algo que nunca esperara sentir: as duas Leprechauns trajavam casacos verdes, uma tendo um tom um pouco mais claro do que o da colega, com sapatos avermelhados recobertos por uma fivela dourada em cinta marrom. O pigmento de suas peles passara daquele cinza-claro para um rosa-salmonado, refletido intensamente pela luz solar.
Sua mente discorria em pensamentos loucos tentando alcançar alguma compreensão sobre aquela situação. Não entendia como aquele mundo poderia existir, ou mesmo, como sua mente havia se tranformado daquela forma. Olhou ao redor, e cada nova imagem que encontrava seus olhos vibravam com as mais lindas cores, os mais vívidos tons. Viu o sol dourado iluminar o pedaço de terra marrom em seus pés, viu as casas dos seus meio-parentes Leprechauns, um degradê que ia de um intenso azul-celeste para um verde-limão. A jaqueta de couro, outrora cinza claro, passara para um verde-bandeira magnífico, que combinava muito bem com os sapatos verde-musgo afivelados (a fivela trazia um trevo verde-limão adornado). A barba em seu rosto passara do pálido cinza tradicional para um vermelho vibrante, e até aquele cachimbo transformara-se em uma verdadeira obra prima feito de raiz de roseira.
Visus estava incrédulo, seu mundo fora bagunçado em apenas uma ação, e pior, uma ação que ele sempre considerou desprezível. Seu meio-parente Oculus olhava-o com aquele familiar sorriso nos lábios, o que intrigou Visus e o levou a questioná-lo sobre as razões por trás daquela louca transformação. Oculus disse-lhe:
“Visus, você passou a vida como um Clurichaun, isolado e ávido por bebidas, dores e solidão. A falta de motivação para se engajar em relações frutíferas por conta de valores pessoais levou-o a ver todos como inimigos, sedentos por todas as posses e alegrias que você havia arduamento acumulado. Não demorou muito para tornar-se amargo, mal-humorado, ranzinza e, claro, cada vez mais só.
 No entanto, essa visão acabou privando-o de aventuras explêndidas, de ensinamentos valiosos e de choques de valores com seus iguais. Como você vê os acontecimentos de hoje?”

Depois de muitos minutos pensando, Visus respondeu:
“Não importa que o ser seja meu amigo ou inimigo. O importante é que todo ser pode ser meu professor.”
Visus olhou para baixo, e viu seu antigo sapato negro transformar-se no belo sapato verde-musgo afivelado. Sua blusa cinza rasgada dera lugar a uma suntuosa jaqueta verde-bandeira. Colocou as mãos no queixo esguio, apenas pra ser surpreendido com uma espessa barba. A antiga boina carcomida deu lugar ao chapéu verde afivelado.
De Clurichaun passou a Leprechaun, o mal-humor deu lugar a alegria contagiante, cada nova relação trazendo mais tonalidades para aquela louca realidade. Seu mundo cinzento fora recoberto por um degradê multi-colorido. Visus sentia-se, enfim, pleno.

domingo, 26 de junho de 2016

A Colmeia


Arrastando-se entre casulos larvais, as pequenas operárias alimentavam e resguardavam as novas gerações daquela sociedade magnífica, trabalhando incessantemente. O zumbido da Colmeia aumentava com a aproximação das campeiras, o precioso elixir dos pequenos artrópodes envolto em suas asas e reservatórios. As jovens abelhas sonhavam com o dia em que poderiam ver os campos de flores e ser componentes vitais do funcionamento da Colmeia.
Cuidando carinhosamente dos recém-nascidos, limpavam exaustivamente cada casulo, ao ponto de tornar a cerâmica das paredes praticamente transparente. Enquanto atendiam seus pequenos irmãos, indefesos no estágio larval em que se encontravam, as operárias podiam acompanhar a movimentação das veteranas: as abelhas nutrizes, as receptoras, as construtoras, as guerreiras e as campeiras. Todas trabalhando incansavelmente pela querida Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema, responsável por conceber as várias gerações de habitantes daquela colônia maquinista.
          Dentre estas operárias encontrava-se Geometris, jovem operária de apenas 3 dias, considerada uma profissional e exemplo de limpadora pelos seus pares e irmãos mais novos. Seu nome, um apelido que ganhara após a grande "Batalha Vespeira", veio pela utilização de uma técnica de voo até então desconhecida, e que provou ser a chave para o sucesso da Colmeia: um voo geométrico, em formato de oito, que indicava os pontos fracos e os flancos do inimigo. Sem Geometris, a Colmeia jamais teria sobrevivido, todos concordavam. Sua fama fora às alturas quando descobriram que era apenas uma operária com 60 horas de vida, um feito recorde até mesmo para aquela Colmeia profissional.
          Caminhava entre seus pares, averiguando os serviços realizados, espalhando elogios ou conselhos onde fossem necessários, a preocupação do bem-comum sempre acompanhando-a nos pensamentos. Tinha a mente envolta na construção da ala B, atualizada segundo as novas técnicas apídeas para abrigo e manutenção de larvas, que serviria para abrigar o novo lote de irmãos e irmãs, escalonado para o dia seguinte. A construção estava no seu ponto final, e agora a atenção das operárias voltava-se para os mínimos detalhes interiores, de modo a garantir a segurança e o conforto dos novatos.
          Ao acompanhar a ativação das unidades de refrigeração e condicionamento de ar, imediatamente as operárias perceberam que a temperatura nos casulos da ala atual (ala A) também havia se alterado, e as pequenas larvas começavam a agonizar por conta do frio intenso. Precisaram desligar todas as unidades imediatamente de modo a evitar uma catástrofe maior, e logo se reuniram ao redor de Geometris afim de discutir o ocorrido.
          Inicialmente, o grupo negou qualquer erro no projeto daquelas engenhocas. Não faziam ideia de como funcionavam internamente, mas tinham total convicção nos planejadores reais (a casta de conselheiros com controle sobre todas as funções práticas da Colmeia) que sequer ousaram questionar uma eventual falha de projeto. Sabiam que suas ordens vinham diretamente da Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema e amada mãe-líder, portanto não poderiam apresentar funcionamento indevido ou complexidade de confecção, afinal as humildes operárias eram responsáveis pela construção e operação de tal maquinário.
           Como não poderiam aceitar uma falha de projeto por convicção genética, o grupo logo aventurou-se nas possibilidades para solucionar o caso, chegando à conclusão que poderiam atingir o mesmo objetivo se criassem buracos de ventilação nas paredes externas da Colmeia. Por conta da segurança, entendiam que os buracos precisavam ser pequenos, com diâmetro equivalente à ponta de seus ferrões, o que poderia criar obstáculos na circulação de ar. Solucionaram o caso de modo conjunto, guiadas por Geometris, de modo que a Colmeia ficou completamente revestida de minúsculos dutos e entradas de ar.
           No dia seguinte, enquanto fiscalizava a finalização da ala B, Geometris e seus pares foram novamente surpreendidos com outra interrupção inesperada. Dessa vez, a causa estava na implantação dos novos habitáculos larvais, especialmente desenhados para impactar o desenvolvimento das novas gerações, garantindo maior qualidade e controle. Perceberam que a parte inferior era muito retangular, o que poderia ocasionar asfixia nos novatos comprometendo seu crescimento pleno. O que tornava essa situação incomum era o fato de que a ordem para a implantação destes habitáculos partira do mesmo grupo de planejadores reais, algo que causou incômodo entre as operárias.
         Rapidamente colocaram as dúvidas sobre o projeto de lado (afinal, precisavam confiar nas boas intenções de seus superiores) e se reuniram para resolver este novo empecilho. Elaboraram um estratagema para alargar o bocal inferior dos habitáculos, o que seria feito em duplas para que uma abelha pudesse supervisionar e auxiliar o seu par. Novamente delegaram à Geometris a liderança daquela empreitada, o que provou ser um fator vital no sucesso da estratégia. Pouco antes dos novatos serem entregues à ala B todos os habitáculos haviam sido alargados. As novas companheiras de colônia foram ajeitadas confortavelmente, e logo o som de gritaria e choradeira tomou conta do ambiente, demonstrando que o esforço daquelas operárias havia sido bem sucedido.
          Naquela noite, Geometris não pode descansar em seu casulo, envolta em pensamentos que variavam desde sua promoção iminente (seria elevada para abelha-nutriz no próximo dia, responsável pela alimentação das novas gerações), aos problemas que seu grupo encontrou na construção da ala B; das dúvidas com relação aos projetos ordenados pelos planejadores reais, até o tão sonhado dia em que se tornaria abelha-campeira, o cargo mais alto de uma operária. Sua noite mal-dormida refletiu-se na manhã seguinte durante a operação de transição de cargo, onde teve a infelicidade de cochilar enquanto sua Majestade falava às novas abelhas-nutrizes. Por sorte, nenhum de seus pares percebeu o momento de fragilidade, do contrário teria sofrido punições severas.
       Com o peito estufado de orgulho, Geometris inflou-se ao ver a euforia de seus pares com sua conquista. De longe fora a operária mais ovacionada da cerimônia, algo que não passou despercebido aos olhos da querida Abelha-Rainha, ocasionando um convite para reunião entre Geometris e sua Majestade Suprema. Acompanhadas pelos olhares de desaprovação dos planejadores reais, sua Majestade e Geometris se dirigiram para a Câmara Real, tendo uma conversa calorosa e duradoura.
          De repente, a entrada da Câmara Real fora tomada pelos Planejadores Reais e sua Guarda Especial, que prontamente envolveram Geometris e a Abelha-Rainha em um círculo mortal de ferrões nervosos, todos apontados para as duas abelhas no centro. Indignada com a atitude de seus conselheiros, sua Majestade olhava incrédula para a face de seu planejador mais querido, Zang Oso, ordenando uma explicação imediata para aquela atitude traidora.
        Ignorando os chamados de sua líder, Zang virou-se para seus companheiros dando ordens para tomarem de assalto a ala B e iniciarem aquilo que chamou de “Golpe da Colmeia”, muito embora nem a Abelha-Rainha ou Geometris soubessem o significado daquele termo. Virou-se para Geometris, um sorriso torto cruzando a face, e ordenou que fosse colocada em quarentena imediatamente, com comando de extermínio agendado para aquela mesma noite. Guardas Especiais tomaram Geometris pelas articulações e asas, carregando-a rumo aos salões inferiores da Colmeia, enquanto ela se debatia e aclamava por auxílio.
         Na Câmara-Real, Zang Oso fazia seu famoso discurso de vitória. Falava em altos brados sobre como a transformação que promoveria nas próximas gerações tornaria a Colmeia melhor; como a Abelha-Rainha era fraca ao confiar o trabalho de construção e manutenção daquela fabulosa colônia à seres inferiores; como a manipulação genética que ele, Zang, faria, tornaria a Colmeia imbatível. O monólogo parecia interminável, interrompido ocasionalmente por um ou outro gemido da Abelha-Rainha, prontamente respondido com bofetadas e xingamentos. Sua Majestade encontrava-se completamente só, sentia-se abandonada pelas mesmas abelhas que tanto trabalhou para criar e desenvolver. Via-se soterrada por um desespero profundo.
         Inexplicavelmente o monólogo dera lugar a um curto silêncio, seguido de uma eclosão de vozes enfurecidas. Zang e sua Majestade voltaram-se para a entrada da Câmara Real no exato momento em que esta era tomada de assalto por um verdadeiro enxame de operárias, o zumbido das asas se misturando ao estalar dos ferrões que ocasionalmente encontravam o piso. Em movimentos rápidos, coordenados e precisos, o enxame derrotou com facilidade a Guarda Especial, colocando Zang em posição diametralmente oposta àquela na qual estava momentos antes. A Abelha-Rainha fora libertada enquanto as operárias reuniam os planejadores, Zang entre eles, em uma roda no centro do enxame, ferrões apontando perigosamente para seus corações.
          Em uma reviravolta improvável, as abelhas operárias haviam retomado o controle da Colmeia para sua líder, a Abelha-Rainha, enquanto esta olhava-as tomada por incredulidade. Quando finalmente recuperou os sentidos, pediu para ter uma audiência com a líder daquele grupo formidável, e foi surpreendida com a figura de Geometris emergindo entre suas iguais. A Abelha-Rainha falou pela primeira vez como se estivesse interagindo com outra Abelha-Rainha, a voz carregada de espanto e admiração, questionando como os acontecimentos daquela noite haviam sido possíveis.
         De modo tranquilo, Geometris humildemente requisitou a presença da Abelha-Rainha aos andares inferiores, de modo que pudesse explicar e demonstrar com observações. Arrastaram-se entre os casulos larvais, deparando-se com as unidades de refrigeração e condicionamento de ar, onde Geometris pode apontar suas dúvidas sobre o projeto de concepção daquele maquinário, e mostrar à sua Majestade as soluções práticas, simples e rápidas que seu grupo havia encontrado.
          Das unidades de refrigeração e condicionamento de ar passaram aos habitáculos larvais especiais. A Abelha-Rainha permaneceu calada durante toda a explicação, enquanto Geometris lhe demonstrava os diversos obstáculos que haviam sobrepujado para poderem finalizar a ala B. Ao final, a Abelha-Rainha virou-se para Geometris e lhe disse:
“Eu confiei todo o planejamento e cronograma de tarefas desta Colmeia aos Planejadores, com fé nas qualidades genéticas que apresentavam. Eu lhes pedi para planejar a construção da ala B, maior do que a ala inicial, apenas para dar mais conforto e segurança às larvas, mas não lhes pedi para elaborarem máquinas de refrigeração de ar ou habitáculos especiais. Fui cega a ponto de não ver o que estavam fazendo, fui tola a ponto de não perguntar, e fui insensível a ponto de não me importar o suficiente para vir aqui e testemunhar o resultado dos meus pedidos.
Sem vocês, minhas queridas operárias, nada disso seria possível. Especialmente você, Geometris. Como poderia retribuir o que fizeram por nossa Colmeia?”
A resposta de Geometris continua permeando o pensamento da Abelha-Rainha e da Colmeia até os dias atuais. Suas palavras, embora poucas, estavam carregadas de significado. Eram elas:

         “Será que não seria melhor nos dar uma chance para que possamos descobrir, por conta própria, através de nossas habilidades e talentos, as melhores maneiras de servirmos uns aos outros?”

domingo, 19 de junho de 2016

Entrevista inusitada

Sentado naquela cadeira desconfortável, o filhote esperava ansioso pelo tão sonhado chamado. Pensava nos momentos que vivera até ali, os ensinamentos de seus pais e amigos passavam velozes, teimosos o suficiente para se perderem em meio aos devaneios leoninos. Cada segundo aumentava a angústia no seu estômago, vazio desde a última gazela, elevando sua ansiedade, impulsionada pela juba mal arrumada.
         Finalmente veio o chamado pelo alto falante: “Senhor Leôncio Júnior, estamos prontos para recebê-lo.” O pequeno filhote levantou-se, as pernas trêmulas, e se dirigiu para a porta de mogno a sua frente. Do outro lado, uma cena surpreendente: três leões alfa, trajados em belos ternos de risca de giz, sentavam-se ao centro de um semi-círculo, agrupados por seis leoas extremamente elegantes, todos absortos em suas próprias anotações. A sala era gigantesca, colunas de ouro maciço subiam até encontrarem a abóbada superior, adornadas dos mais variados troféus e prêmios. Uma verdadeira obra-de-arte.
          O filhote sentou-se na cadeira de couro prostrada no meio do semi-círculo, demasiado nervoso para dizer qualquer palavra. O senhor leão ao centro, aparentemente o diretor-alfa, cumprimentou-o, e deu-se início aos minutos mais extensos da vida daquele pequeno felino.
         De volta em casa, o filhote comemorava com a família, incrédulo pelo sucesso. Conseguira a vaga, era agora um autêntico trainee da Companhia Leonina de Alimentos, o explendor de alimentação leonina sub-saariana. Depois do que pareceram dias de churrasco gazelístico, o filhote teve a oportunidade de entender como aquele turbilhão de acontecimentos fizera-o chegar aquele ponto.
       Lembrou de seu pai, Leôncio Sênior, e dos momentos que passaram juntos. Lembrou dos ensinamentos nos esportes leoninos, dos treinos em artes felinais, e das palavras sábias durante as conversas em frente à fogueira. O pequeno Leôncio Júnior entendia como aqueles instantes valorosos tinham afetado suas técnicas, como tinham demonstrado os melhores meios pra se alcançar o sucesso quando se precisa usar a racionalidade plena. Assim, Leôncio Júnior via suas habilidades técnicas como cópias dos ensinamentos de seu pai, e suas consequências eram claras naquele sucesso.
           Mas ainda restava a dúvida, o feedback tinha sido estranho. Suas melhores qualidades, ao menos na visão daqueles leões imponentes, não estavam nas habilidades técnicas, mas na capacidade de relacionamento daquele filhote. Leôncio procurava, em vão, entender como havia adquirido habilidades tão diferentes dos ensinamentos do pai, tão subjetivas à cada um, de modo que sua racionalidade não poderia vê-las como algo além de pouco interessante.
         Neste momento, sua mãe, a majestosa Leona Sênior, entretia um grupo de leões e leoas em divertidas histórias. Leôncio Júnior não havia prestado tanta atenção ao que sua mãe lhe ensinara, tinha o hábito de entender suas palavras como chatice, como supérfluas e que só serviam para enervá-lo. Sabia que ambos se amavam, como mãe e filho, mas Leona Sênior fora uma financista espetacular para a União Internacional dos Felinos, e acabou tendo menos tempo disponível para poder passar com o filhote. No entanto, sempre que a oportunidade se mostrava, ela dava prioridade para o filho, algo que ele só percebia agora, enquanto a admirava entretendo diversos hóspedes.
       Ela sempre estava lá, quando podia e quando prometia, nunca havia quebrado o ritual sagrado. Mesmo que o trabalho estivesse apertado, ela encontrava um tempo para prestigiar o pequeno Júnior em suas apresentações de teatro, nos aniversários dos amigos, nas reuniões em família. Leona sempre dava um jeito de sair do trabalho e comparecer, mais do que isso, acabava se tornando parte vital do evento, reunindo todos com alegria e tranquilidade.
        Então, Leôncio Júnior finalmente entendeu. Agora compreendia de onde herdara aquelas habilidades, estranhas à ele por conta da sua racionalidade estúpida. Finalmente viu que imitava Leona em suas atitudes em grupo, que a via como o melhor exemplo de relacionamento social que conhecia. Leona era uma guerreira, tinha vigor e confiança exalando pela pelagem jovial, e era uma interlocutora fantástica, arrancando risadas, sorrisos e abraços onde quer que passasse.
       Foi Leona que ensinou Júnior como se comportar em meio aos iguais. Ela ensinou-lhe o valor do verdadeiro leão, aquele que consegue esquecer o que existe na aparência e nos atos, e procura a índole interior, o espírito felino que incendeia cada um. Leona mostrou-lhe como a vida não é racional, como cada respiração, cada pulsação, cada gole de água eram mais do que vontade de respirar, de correr ou de se refrescar. Eram atitudes que vinham de desejos interiores, mais do que isso, de necessidades vitais, as quais ninguém poderia negar ou escapar.Dessa forma, a racionalidade estúpida de Leôncio via o que sua magnífica mãe tanto tentara lhe ensinar.
        A entrevista não fora o prêmio daquele dia, agora Leôncio Júnior via com clareza. Seu maior prêmio foi poder reconhecer o verdadeiro valor daquela guerreira, batalhadora, amiga, companheira, arquiteta, guarda e guia, sua mãe, Leona Sênior. Afinal, os ensinamentos maternos estão no sangue, e são inerentes aos filhotes. Funcionam mais no inconsciente, tornando-se imprescindíveis na busca de um equilíbrio emocional e na condução das relações sociais. Sem Leona, Júnior não era um verdadeiro leão.

sábado, 11 de junho de 2016

Um ser humano completo

Em um vilarejo pequeno, o garoto praticava sua nova arte. Fora criado naquele ambiente, conhecia cada aspecto daquela mágica, sua mente a saltar entre os mais diversos protótipos. Em sua frente, prostrado sobre a bancada, a primeira tarefa que o mestre havia lhe passado: deveria copiar, com o maior detalhismo possível, o primeiro elmo forjado pelo velho ferreiro.
       Com pesar nos olhos, o garoto olhou o elmo retorcido a sua frente. Tinha aspecto pueril, quase amador, com o aço carcomido em vários pontos e claras marcas de martelos podiam ser vistas em toda a superfície. Até a viseira era fora de esquadro, o que irritou o garoto. “Cresci sob o manto desse velho ferreiro, e esta foi sua primeira ‘obra’? Isso é perda de tempo.”
          O velho ferreiro, ao observar o tormento no rosto do garoto, se aproximou e disse-lhe: “Meu querido aprendiz, vejo que não tomou sua primeira tarefa com agrado. Para forjar meu primeiro elmo, que é este na sua frente, precisei ouvir sabiamente meu mestre, e seguir seus passos cuidadosamente. Como forma de motivação, dou-lhe a oportunidade de me perguntar sobre qualquer aspecto deste elmo, e prometo que a resposta o ajudará a forjar o seu próprio.”
          Assolado por cinismo e descrença, o garoto indagou ao velho ferreiro quanto tempo havia tomado para forjar aquele elmo. Olhando-o calmamente, o ferreiro respondeu: “Uma semana inteira.
Esta era sua única pergunta, quando terminar, por favor, traga o elmo até minha bancada.”
           Ao ouvir aquela resposta, o garoto foi tomado por euforia e egoísmo simultaneamente. Estava claro que o velho havia mentido, aquele elmo era tão amador que qualquer aprendiz poderia forjá-lo em questão de horas, bastava o tempo para aquecer o forno.
         E assim o garoto começou a forjar seu elmo. Seguiu cada passo à partir da memória, havia observado o velho ferreiro forjar  centenas de elmos como aquele, de qualidade e acabamento superiores. No entanto, para sua surpresa, o garoto foi encontrando novas dificuldades que atrasavam e complicavam o processo. Perdeu a conta de quantas vezes precisou recomeçar por cometer erros primários nos passos intermediários, e se enfureceu ao ver dias ensolarados e noites estreladas passando pelas frestas e janelas da cabana apenas para encontrá-lo vez e outra frustrado e desanimado.
           Ao final de uma semana desistiu das tentativas e levou o que poderia ser a estrutura de um elmo para a bancada do velho ferreiro. Quando depositou-a na bancada, olhou para o velho com derrota e remorso no coração, além de raiva e confusão.
        O velho ferreiro observou longa e atentamente o exemplar do garoto. Ao voltar seus olhos para aquela face jovem, sorriu e disse-lhe: “Meu querido aprendiz, vejo a derrota no seu olhar e sinto a confusão permeando sua mente. Como lhe disse, para forjar meu primeiro elmo, que é este ao lado do seu, precisei ouvir sabiamente meu mestre e seguir seus passos cuidadosamente. Pelo seu esforço e dedicação, tem direito à uma nova tentativa, e à uma nova pergunta.”
          Incrédulo com a calma do velho ferreiro ao contemplar o fracasso dele, o garoto perguntou se o velho havia fracassado também em sua primeira tentativa. Sem retornar o olhar, o velho respondeu calmamente: “Não. Esta era sua única pergunta, quando terminar, por favor, traga o elmo até minha bancada.”
           A resposta enfureceu o garoto, ao mesmo tempo que sentia o corpo arder com o misto de fúria e embaraço em seu coração. Lívido de fúria, deu início à forja, cada passo do novo processo permeado pela frustração de não ter alcançado o mesmo patamar do velho ferreiro. O elmo forjado pelo velho era tão amador, e mesmo assim ele não conseguira chegar próximo depois de tantas tentativas. A confusão crescia cada vez mais em sua mente, transcorrendo para seus braços e incorrendo em maiores erros e recomeços. Parecia ao garoto que cada passo daquele processo havia se tornado mais doloroso, mais penoso, mais complexo e com maior probabilidade de erro do que anteriormente. Encontrara tantas dificuldades que por vezes pensara em desistir, entregar o avental ao mestre e procurar outro ofício.
          Os dias e noites passaram velozes, e sem perceber, o garoto passou semanas trabalhando em seu segundo elmo. Ao terminar, um mês depois da primeira tentativa, levou seu elmo orgulhoso para a bancada do velho, claramente pensando ter superado o próprio mestre.
           Para sua surpresa, o velho ferreiro trouxe um segundo elmo, muito mais trabalhado e adornado do que o primeiro, colocando-o ao lado daquele forjado pelo garoto. Ficou claro, de forma quase instantânea, que o velho havia superado seu aprendiz novamente, mesmo que o trabalho ainda não pudesse ser considerado completamente profissional. Haviam arranhões em boa parte da superfície do elmo, e internamente faltava um acabamento acolchoado, além da viseira continuar fora de esquadro, mas a melhora com relação ao modelo anterior era incrível.
              Desolado, o garoto olhou para o velho com lágrimas raivosas nos olhos, acusando-o de enganá-lo. Irrompeu em calúnias contra o velho ferreiro, tentando desqualificá-lo como um mestre incapaz de transmitir seus ensinamentos e de apreciar o trabalho de seus aprendizes.
          O velho se sentou, pegou o elmo do garoto cuidadosamente e o observou longamente. Revirou aquele elmo em todas as direções, prestou atenção a cada acabamento interno e externo, abriu e fechou a viseira bem alinhada e devolveu o elmo à bancada com um largo sorriso. Olhou no fundo dos olhos do garoto, e disse:
          “Meu querido aprendiz, através de seus olhos vejo que aceitou a derrota e a vergonha em seu espírito. Sente-se, e compare sua segunda tentativa à este outro elmo.”
       O velho colocou o primeiro elmo que fez na bancada, ao lado do elmo forjado pelo garoto. Imediatamente o queixo do garoto caiu em descrença: seu elmo era quase profissional comparado ao primeiro elmo do velho. Havia passado tanto tempo desde que o contemplara pela última vez que havia esquecido de como fora forjado, do amadorismo dos detalhes e do acabamento rústico e tosco. Olhou incrédulo para o próprio elmo, uma sensação de orgulho e confusão assolando o peito. Falou ao velho: “Não entendo, porque está me mostrando este seu elmo? O que está tentando mostrar com isso?”
         E assim, sorridente e calmo, o velho respondeu: “Meu querido aprendiz, contei-lhe que precisei prestar grande atenção no meu mestre e seguir cuidadosamente seus passos. O que não lhe contei foram as perguntas que fiz ao meu mestre, as mesmas que você teve oportunidade de me fazer.”
          “Minha primeira pergunta ao meu mestre foi que me ensinasse as técnicas que eu precisava para forjar meu elmo. Com paciência e muita dedicação, ele me ensinou por 2 meses cada passo dessa maravilhosa arte, tomando o cuidado de me deixar experimentar por conta própria todas as etapas. Ao final dos dois meses, ele me deu novamente a tarefa de forjar o elmo, que conclui em uma semana, e é este que hoje você vê como amador e tosco. O elmo não está completo, porque não fora forjado por um humano completo, meu mestre me explicou quando mostrei a ele.
              Minha segunda pergunta ao meu mestre foi que me mostrasse o destino do elmo, pra quem ele seria forjado. Meu pensamento era usar aquela previsão para planejar melhor minha segunda tentativa, e assim ter como resultado um elmo completo. Ele me levou ao cavaleiro que ordenara o elmo, e me liberou para tirar todas as medidas que julgasse necessário. Era como se tivesse o próprio molde na minha mão, não poderia fracassar nesta segunda tentativa.
              E outros 3 meses se passaram, quando finalmente conclui meu trabalho. Dediquei incontáveis horas a todos os detalhes, e entreguei orgulhosamente meu elmo ao meu mestre, este mesmo elmo que lhe mostrei nesta noite. Ao colocá-lo na bancada, meu mestre sorriu e, sem dizer nada, arrastou-o para o canto, colocando ao seu lado um lindo elmo de cavaleiro real, adornado com pedras preciosas e completamente impecável. A mesma sensação que hoje você sentiu, eu senti naquela ocasião. Sentia-me enganado por ele, desolado por todo aquele tempo, energia e esforço desperdiçados.
          Assim, meu mestre me mostrou que meu elmo também não estava completo, continuava sendo forjado por um humano incompleto. E da mesma forma que ele me mostrou como podemos ser completos, agora é minha vez de lhe mostrar:

             Na primeira tentativa, focamos muito no passado, procurando as melhores técnicas para diminuir o tempo gasto e o esforço empreendido, acreditando que o resultado final não será afetado. Quando fracassamos, nos voltamos ao futuro, contemplando nosso objetivo como um sonho que confunde os sentidos, enebriando as emoções e tirando nosso foco. Os resultados bem sucedidos vem quando unimos as técnicas do passado aos objetivos do futuro, mantendo o foco no presente. 
           Em outras palavras: para ser um ser humano completo, suas ações precisam se basear no passado, manter-se focadas durante o presente e ter seus objetivos futuros bem definidos.”

sexta-feira, 29 de abril de 2016

O que realmente importa

               


               O menino acabara de chegar ao vilarejo, e logo se deparou com uma cena inusitada. Os habitantes deste vilarejo possuíam uma característica peculiar: seus corações eram projetados para fora do peito, como em um passe de mágica. Todos os corações eram visíveis, os mais variados, desde aqueles menores, mais experientes com várias cicatrizes e rugas, aos jovens, fortes e destemidos corações, estes aveludados e quase inalterados.
                Logo o menino percebeu uma aglomeração destes habitantes no centro do vilarejo, em forma de círculo. Curioso, chegou mais próximo para poder acompanhar o momento, e se surpreendeu com a imagem à sua frente.
            Uma multidão de habitantes, os corações pulsando de emoção, estava virada para o centro do círculo. Nele encontrava-se um garoto, pouco mais velho do que o menino, que exibia orgulhosamente seu coração. O menino nunca havia visto um coração daquele, tão brilhoso, intocado, sem qualquer ruga ou arranhão. Seu dono exibia o troféu em seu peito com pompa, rodando de um lado para o outro, forçando a respiração para dobrar o tamanho, e com um sorriso de quem entende a posição popular que desfruta.
               Olhando ao redor, o menino pode observar mais habitantes do vilarejo se aglomerando no círculo, ávidos por uma espiada naquele belo espécime. Ao menino, parecia que aquele momento era especial para os habitantes do vilarejo, praticamente todos presentes naquela cena.
                Qual foi a surpresa do menino ao perceber que um senhor estava sentado longe da aglomeração, encarando-a tristemente. À princípio, o menino pensou que o senhor fosse um forasteiro como ele, pois não tinha conseguido visualizar um coração sendo projetado do peito. Ao chegar mais perto, constatou algo que fez o seu próprio coração se encolher de remorso: não conseguira ver o coração do senhor porque ele era menor do que uma noz, tamanha a quantidade de cicatrizes e rugas espalhadas por toda a sua superfície. Seu batimento era fraco e pausado, quase falho, entristecendo ainda mais o menino.
                Nesse momento, o menino tomou a decisão de se aproximar do senhor. Queria lhe perguntar se o senhor precisava de algo, se estava bem. Para seu espanto, o senhor lhe olhou com a dúvida completa estampada na face, sem entender a situação e os motivos para aqueles questionamentos. De modo gentil, o menino fez referência ao coração do senhor, e ao seu estado minguado.
                O senhor, sentindo a ansiedade e a dó pesando nas palavras do menino, lhe disse: “Menino, sinto a dor no tom de suas palavras, vejo a tristeza em seus olhos. Conte-me, por favor, quem você é, de onde veio, e qual sua história. O que fez você chegar aqui?”
                Aquilo foi como um choque na alma do menino. Não entendia como o senhor poderia estar tão calmo diante daquela situação, e fazendo perguntas tão fúteis e banais à ele. No entanto, seu valor de respeito fez-lhe responder aos questionamentos do senhor, contando todas as passagens de sua história.

                Sentados, conversaram por horas. O menino contou cada detalhe de sua vida, os motivos que levaram ele à chegar ao vilarejo, e o que sonhava alcançar ainda em vida. Sem perceber, foi se abrindo cada vez mais àquele senhor desconhecido, terminando sua narrativa pessoal com um largo sorriso.
                O que ele não percebeu é que a medida que foi contando sua história, uma nova cicatriz nascera e se aprofundara no coração do senhor. No final da prosa, o coração era metade do original, com uma cicatriz que lhe percorria um lado completo.
                O menino foi tomado por um pânico súbito, apontando para o coração do senhor, e implorando  que fosse procurar auxílio, ou que ao menos lhe deixasse ajudar de alguma forma.
                O senhor, então, respondeu: “Meu querido amigo, acalme-se. Você já me ajudou, embora ainda não entenda isso completamente. Veja só, os habitantes desta pequena vila tem duas características peculiares: 
              A primeira você já observou, a de que nossos corações tem uma imagem exposta, e podemos expô-los para ao mundo da forma como realmente são; a segunda, mais profunda e mais crucial, é a de que estes mesmos corações podem sofrer variações, ganhar cicatrizes, rugas, e arranhões, à medida que são tocados por outros corações e mentes.
                Em outras palavras, cada uma dessas cicatrizes e rugas que você vê no meu coração significam uma pessoa que se tornou importante para mim, igual à você. Uma pessoa que parei para ouvir sua história, entender seus valores, me motivar com seus sonhos e me alegrar ao ver sua jornada. Cada relacionamento, único e pessoal como é, traz ensinamentos e aprendizados que precisamos para poder trilhar nosso próprio caminho. Estas cicatrizes e rugas demonstram todas as pessoas que importei para meu coração, junto de seus valores, aprendizados, erros e acertos, como você pode ver nessa nova cicatriz, que é sua!

                Para mim, o maior valor na vida não é ter um coração impecável, mas ter um coração que demonstre quanto ouvi, aprendi, e vivi junto com seres humanos magníficos. Este é o motivo para meu coração ser assim, pequeno e minguado, mas calmo, paciente e carinhoso, um bom coração.”