domingo, 28 de agosto de 2016

Homenagem ao meu irmão

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Sabia que aquele dia chegaria, era inevitável. Tentara retardar ao máximo, dava as mais variadas desculpas e trocava o assunto de modo astuto apenas pra se conter em revelar algo dessa natureza. Era, enfim, o fátidico dia em que não poderia mais fugir.
Seu filho era um menino de estatura baixa e corpo atlético, um rosto recoberto por uma penugem rala, típica da juventude, mas cultivada com orgulho. Os óculos escondiam os olhos castanho-escuro cheios de vitalidade e energia. O garoto havia crescido à semelhança do pai, mas sem saber que trilhava um caminho muito maior por vir. Ainda amadurecendo, como todos os jovens que entram no mundo adulto, ele dava os primeiros passos rumo à seu próprio destino na faculdade. Curiosamente, e sem tomar conhecimento, seguia os passos de seu pai, que caminhara naquele mesmo campus havia pouco menos de três décadas.
Naquele dia estava sentado ao lado do pai, ambos engajados no hábito corriqueiro da velha cachimbada. Por coincidência, ou ocasião do destino, escolheram para o momento Captain Black Dark, um excelente fumo a base de ervas Black Cavendish aromatizado com toques de chocolate, café e baunilha. Harmonizaram com um excelente Glenfiddich 12 Anos Special Reserve servido em copos com duas pedras de gelo para o filho, nada para o pai.
Aquele era um hábito típico entre eles, quase um ritual de ligação entre os dois. O filho lembrava dos mais variados amigos que estiveram naquelas cadeiras e deram risadas com eles, sempre acompanhados de uma boa escolha de tabaco e um bom whiskey. Ele cresceu naquele meio, vendo o pai e seus amigos conversarem sobre os tempos de mocidade e lembrando das grandes aventuras, dos amigos queridos que não estavam mais ali, e dos momentos mais marcantes que enraizaram os laços de amizade e confiança.
Mas aquele dia era diferente, o garoto não era mais um menino. Recebera o convite para entrar na faculdade na noite anterior, um presente mais do que especial para comemorar seu aniversário de 18 anos. Naquele dia estava sentado com seu querido pai, vendo ele ensiná-lo à cuidar bem do seu novo presente: um cachimbo Peterson Churchwarden D15, feito de raíz de sarça-ardente. Um cachimbo magnífico, com a piteira alongada e um bocal largo, tinha o acabamento envernizado e inteirinho trabalhado à mão. Uma peça singular, para um momento singular.
Acendeu o cachimbo enquanto tomava um gole do magnífico whiskey, saboreando aquele primeiro instante de grande intimidade com seu pai. Ele percebeu o relaxamento do pai, e entendeu que aquele poderia ser o melhor momento pra falar o que sentia:
“Pai, muito obrigado por isso, por me deixar entrar no seu hábito e entender um pouco mais como você é. Sinto como se fizesse parte de um seleto grupo que tem aventuras incríveis e histórias memoráveis. Sentado aqui, estou lembrando de quando me contava as histórias do seu momento de faculdade, pensando que gostaria ter as minhas próprias aventuras quando chegar lá, e poder ter meus próprios amigos, como você tem ao Daniel, ao Gustavo, à Rosa, ao Renan, à Júlia, ao Lucas, o Rodrigo, e à tantos outros.
Mas confesso que sempre fiquei curioso com um de seus amigos, pai. Pra ser mais específico, estou falando do meu xará, seu amigo Murilo. Quando você conversa com o Rodrigo  e o Renan sobre ele, sempre mantém um tom baixo, e tenho que admitir ter ouvido um ou outro fungado do lado de fora da sua porta quando eles vão embora e as luzes se apagam.
Você nunca me contou nada sobre ele, mas não é só isso. Você também não me respondeu todas as vezes que perguntei porque escolheu esse nome, Murilo, pra mim. Infelizmente sou seu filho, assim tenho algum miolo nessa cabeça semi-oca. Quer me contar agora, antes de eu começar essa longa e maravilhosa jornada que vai me tornar alguém neste mundo?”
O pai ficou se remexendo na cadeira, o cachimbo semi-apagado pendendo pelo lábio. Demorou alguns momentos até que se movesse, a mão tateando em busca do copo à sua frente. Depois de molhar os lábios e se endireitar na cadeira, voltou os olhos para o filho. Examinou seu maior tesouro e orgulho, com toda cautela, atentando para cada novo detalhe em sua feição e conduta. Percebeu, com enorme espanto, que estava diante de um homem, não mais aquele garoto que ele criou e cuidou com tanto afeto e carinho. Um homem que ele passaria à respeitar e a ter muito mais orgulho, ainda mais se tivesse uma bola de cristal para ver o futuro.
Com tudo isso em mente, acendeu seu velho cachimbo Montana 26 curvado, uma relíquia dos tempos de faculdade. Aquele fumo queimava lentamente, o aroma do Captain Black Original  exalando na fumaça que preenchia a sala. A forma como o pai fumava aquele cachimbo dava a impressão que não escolhia as baforadas do cachimbo, mas as próximas palavras que diria à seu estimado filho, plenamente consciente dos efeitos que ocasionariam nele e que mudariam o verdadeiro núcleo do seu amado tesouro. Por fim, com a voz embargada, começou a narrativa:
“Murilo, meu querido filho. Acho que nunca lhe disse isso, mas você é esperto demais pra sua idade, com certeza. Como você sabiamente concluiu, seu nome veio em homenagem ao meu grande amigo e irmão, Murilo Rosendo.
Conheci meu irmão de consideração ainda no primeiro ano de faculdade. Na época, eu acabara de ser admitido nos quadros da empresa júnior da faculdade como trainee da Diretoria Administrativo-Financeira, que era liderada por uma das melhores mulheres que tive o prazer e a honra de conhecer. Aquele ano foi repleto de aprendizados e aventuras, como você bem sabe.
Mas não foi dentro da empresa que conheci meu estimado irmão, ao contrário, foi a pista de atletismo que nos introduziu, assim foi a forma como o destino escolheu nos unir. Eu havia entrado há pouco para o time de atletismo por convite de outro grande colega, e o Murilo se juntou ao grupo no final do mesmo ano. Treinamos, corremos, disputamos provas e competimos juntos, na maioria das vezes um contra o outro.
Meu irmão era uma pessoa muito rápida na pista, parecia Usain Bolt, quando largava ninguém era capaz de alcançá-lo. Nos treinos ele fazia o máximo pra que essa diferença não ficasse evidente, embora todos do grupo concordavam que seu talento e liderança eram naturais e muito acima da média. Encontramos no esporte nosso ponto em comum muito antes de saber que veríamos muitos outros aspectos semelhantes em nossas jornadas, coisas que nossos caminhos nos reservaram com cuidado.
No segundo ano de faculdade tive o imenso prazer de recepcionar meu irmão na empresa júnior. Fiquei muito feliz quando descobri que havia sido alocado como seu mentor no primeiro trabalho dentro da diretoria. Algo já me dizia, logo no primeiro momento, que teríamos muito mais à compartilhar do que o ambiente profissional jamais proporcionaria.
Eu não estava enganado, nos tornamos uma equipe formidável! Confesso que aprendi muito mais do que ensinei à ele. No início eu acabei produzindo a maioria dos trabalhos tendo o auxílio dele, mas, com o tempo, o processo se inverteu. No entanto, jamais poderia ter imaginado a carga de ensinamentos reais sobre a vida, o cotidiano, as relações interpessoais e os valores que carregamos, todos aprendizados que ele me transmitiu naquele ano em que trabalhamos muito próximos. Durante este período selamos a amizade que definiria nossos caminhos mais adiante.
No final do segundo ano eu já considerava o Murilo como um irmão. Ele sabia de mais segredos do que a grande maioria dos meus amigos daquela época, e distribuía os mais sábios conselhos. O que diferenciava-o dos demais era sua capacidade de ter calma e tranquilidade em momentos de extrema pressão, sempre oferecendo sugestões plausíveis e flexíveis para o grupo, ou mesmo pra mim em assuntos pessoais.
As conversas sobre a origem do universo, os motivos e a moral que nós carregamos dentre de nós mesmos, os valores que podemos repassar para as próximas gerações e os ensinamentos que podemos colher dos nossos antepassados foram alguns exemplos da vastidão de assuntos que permeava nossos papos. Poderíamos ficar na sala de reuniões conversando por horas à fio, como fizemos inúmeras vezes, guardando belos registros do que nossas mentes haviam produzido de todos aqueles momentos únicos.
Nessas conversas meu irmão me ensinou o maior valor que carrego quando o assunto é relacionamento interpessoal. Dizia ele, em um diálogo particularmente longo que envolveu alguns assuntos espinhosos da conduta de nossos colegas: ‘Olha Pedro, não sei se concordo com isso de que precisamos ter amigos e inimigos, porque sempre vi meus inimigos como adversários. Aprendi que é mais interessante, para mim e para eles, que eu tente amá-los e respeitá-los mais do que amo e respeito meus próprios amigos e familiares. Em outras palavras, se eu tratá-los como eles me tratam, não só serei igual à eles, como não farei nada para mudar este cenário.’
Esse era seu jeito, em poucas palavras dizia tudo. Era uma pessoa espetacular, que tinha um coração absolutamente incrível. Arrisco dizer que aprendi mais com ele, uma pessoa relativamente mais nova do que eu, do que com muitos senhores que se diziam grandes sábios. Aquela amizade havia se tornado algo que eu cultivaria e que definiria minhas próprias ações, sem eu tomar conhecimento disso na ocasião. Eu já sentia que não queria perder aquele irmão, não importava com o preço que precisasse pagar.
Infelizmente o destino decidiu que seria diferente. Já no terceiro ano nossos caminhos começaram a se separar, inicialmente quando ele se tornou gerente de projetos, e depois quando eu decidi sair da empresa no final do ano. Porém, isso não foi suficiente pra afastar nossa amizade. Aproveitamos todas as oportunidades que tivemos, por menor que fossem, para ao menos colocar a conversa em dia e continuar fazendo parte da vida cotidiana um do outro.
Na metade do último ano, à menos de 8 meses da formatura, tudo mudou. Ele fazia parte de uma equipe de projeto da empresa que precisou realizar um trabalho de pesquisa em outro estado, e tomaram a estrada em uma noite de sexta-feira. Nunca poderia imaginar que aquele dia seria o último em que veria meu estimado irmão. No trajeto houve um trágico acidente envolvendo o carro dele. Infelizmente meu irmão e outro colega de trabalho, Luiz Eduardo Bossolan, não estavam mais entre nós.
Naquele momento, e nas semanas seguintes, eu senti o chão desmoronar aos meus pés. Era como se tivesse me jogado em um abismo muito profundo, um misto de saudade, de solidão e de culpa. Saudade do meu irmão com quem eu não conversaria mais, não daria mais risadas. Solidão pelo vazio que ele deixou no meu coração, pela cicatriz profunda que ele fez durante nosso pequeno tempo de convivência, o quanto ele foi e é importante para mim. E culpa por ter perdido essa corrida, a única corrida que eu prometi ganhar dele. Havíamos combinado que eu ia tentar ganhar a corrida da vida, mas é claro que ele tinha de vencer. Meu irmão era um talento raro, um atleta nato, um ser humano inesquecível, uma alma única, inestimável e insubstituível!
               É por conta de tudo isso, meu querido filho, que o batizei em homenagem ao Murilo. Seu nome é pela sua sabedoria, pelo seu caráter, pela sua estima e pela sua vontade em ajudar o próximo. Acima de tudo, seu nome é Murilo pra representar o ser-humano magnífico que te protege, a alma que hoje olha por você e por todos nós, nos guiando em nossas conquistas, alegrias e realizações.”