domingo, 26 de junho de 2016

A Colmeia


Arrastando-se entre casulos larvais, as pequenas operárias alimentavam e resguardavam as novas gerações daquela sociedade magnífica, trabalhando incessantemente. O zumbido da Colmeia aumentava com a aproximação das campeiras, o precioso elixir dos pequenos artrópodes envolto em suas asas e reservatórios. As jovens abelhas sonhavam com o dia em que poderiam ver os campos de flores e ser componentes vitais do funcionamento da Colmeia.
Cuidando carinhosamente dos recém-nascidos, limpavam exaustivamente cada casulo, ao ponto de tornar a cerâmica das paredes praticamente transparente. Enquanto atendiam seus pequenos irmãos, indefesos no estágio larval em que se encontravam, as operárias podiam acompanhar a movimentação das veteranas: as abelhas nutrizes, as receptoras, as construtoras, as guerreiras e as campeiras. Todas trabalhando incansavelmente pela querida Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema, responsável por conceber as várias gerações de habitantes daquela colônia maquinista.
          Dentre estas operárias encontrava-se Geometris, jovem operária de apenas 3 dias, considerada uma profissional e exemplo de limpadora pelos seus pares e irmãos mais novos. Seu nome, um apelido que ganhara após a grande "Batalha Vespeira", veio pela utilização de uma técnica de voo até então desconhecida, e que provou ser a chave para o sucesso da Colmeia: um voo geométrico, em formato de oito, que indicava os pontos fracos e os flancos do inimigo. Sem Geometris, a Colmeia jamais teria sobrevivido, todos concordavam. Sua fama fora às alturas quando descobriram que era apenas uma operária com 60 horas de vida, um feito recorde até mesmo para aquela Colmeia profissional.
          Caminhava entre seus pares, averiguando os serviços realizados, espalhando elogios ou conselhos onde fossem necessários, a preocupação do bem-comum sempre acompanhando-a nos pensamentos. Tinha a mente envolta na construção da ala B, atualizada segundo as novas técnicas apídeas para abrigo e manutenção de larvas, que serviria para abrigar o novo lote de irmãos e irmãs, escalonado para o dia seguinte. A construção estava no seu ponto final, e agora a atenção das operárias voltava-se para os mínimos detalhes interiores, de modo a garantir a segurança e o conforto dos novatos.
          Ao acompanhar a ativação das unidades de refrigeração e condicionamento de ar, imediatamente as operárias perceberam que a temperatura nos casulos da ala atual (ala A) também havia se alterado, e as pequenas larvas começavam a agonizar por conta do frio intenso. Precisaram desligar todas as unidades imediatamente de modo a evitar uma catástrofe maior, e logo se reuniram ao redor de Geometris afim de discutir o ocorrido.
          Inicialmente, o grupo negou qualquer erro no projeto daquelas engenhocas. Não faziam ideia de como funcionavam internamente, mas tinham total convicção nos planejadores reais (a casta de conselheiros com controle sobre todas as funções práticas da Colmeia) que sequer ousaram questionar uma eventual falha de projeto. Sabiam que suas ordens vinham diretamente da Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema e amada mãe-líder, portanto não poderiam apresentar funcionamento indevido ou complexidade de confecção, afinal as humildes operárias eram responsáveis pela construção e operação de tal maquinário.
           Como não poderiam aceitar uma falha de projeto por convicção genética, o grupo logo aventurou-se nas possibilidades para solucionar o caso, chegando à conclusão que poderiam atingir o mesmo objetivo se criassem buracos de ventilação nas paredes externas da Colmeia. Por conta da segurança, entendiam que os buracos precisavam ser pequenos, com diâmetro equivalente à ponta de seus ferrões, o que poderia criar obstáculos na circulação de ar. Solucionaram o caso de modo conjunto, guiadas por Geometris, de modo que a Colmeia ficou completamente revestida de minúsculos dutos e entradas de ar.
           No dia seguinte, enquanto fiscalizava a finalização da ala B, Geometris e seus pares foram novamente surpreendidos com outra interrupção inesperada. Dessa vez, a causa estava na implantação dos novos habitáculos larvais, especialmente desenhados para impactar o desenvolvimento das novas gerações, garantindo maior qualidade e controle. Perceberam que a parte inferior era muito retangular, o que poderia ocasionar asfixia nos novatos comprometendo seu crescimento pleno. O que tornava essa situação incomum era o fato de que a ordem para a implantação destes habitáculos partira do mesmo grupo de planejadores reais, algo que causou incômodo entre as operárias.
         Rapidamente colocaram as dúvidas sobre o projeto de lado (afinal, precisavam confiar nas boas intenções de seus superiores) e se reuniram para resolver este novo empecilho. Elaboraram um estratagema para alargar o bocal inferior dos habitáculos, o que seria feito em duplas para que uma abelha pudesse supervisionar e auxiliar o seu par. Novamente delegaram à Geometris a liderança daquela empreitada, o que provou ser um fator vital no sucesso da estratégia. Pouco antes dos novatos serem entregues à ala B todos os habitáculos haviam sido alargados. As novas companheiras de colônia foram ajeitadas confortavelmente, e logo o som de gritaria e choradeira tomou conta do ambiente, demonstrando que o esforço daquelas operárias havia sido bem sucedido.
          Naquela noite, Geometris não pode descansar em seu casulo, envolta em pensamentos que variavam desde sua promoção iminente (seria elevada para abelha-nutriz no próximo dia, responsável pela alimentação das novas gerações), aos problemas que seu grupo encontrou na construção da ala B; das dúvidas com relação aos projetos ordenados pelos planejadores reais, até o tão sonhado dia em que se tornaria abelha-campeira, o cargo mais alto de uma operária. Sua noite mal-dormida refletiu-se na manhã seguinte durante a operação de transição de cargo, onde teve a infelicidade de cochilar enquanto sua Majestade falava às novas abelhas-nutrizes. Por sorte, nenhum de seus pares percebeu o momento de fragilidade, do contrário teria sofrido punições severas.
       Com o peito estufado de orgulho, Geometris inflou-se ao ver a euforia de seus pares com sua conquista. De longe fora a operária mais ovacionada da cerimônia, algo que não passou despercebido aos olhos da querida Abelha-Rainha, ocasionando um convite para reunião entre Geometris e sua Majestade Suprema. Acompanhadas pelos olhares de desaprovação dos planejadores reais, sua Majestade e Geometris se dirigiram para a Câmara Real, tendo uma conversa calorosa e duradoura.
          De repente, a entrada da Câmara Real fora tomada pelos Planejadores Reais e sua Guarda Especial, que prontamente envolveram Geometris e a Abelha-Rainha em um círculo mortal de ferrões nervosos, todos apontados para as duas abelhas no centro. Indignada com a atitude de seus conselheiros, sua Majestade olhava incrédula para a face de seu planejador mais querido, Zang Oso, ordenando uma explicação imediata para aquela atitude traidora.
        Ignorando os chamados de sua líder, Zang virou-se para seus companheiros dando ordens para tomarem de assalto a ala B e iniciarem aquilo que chamou de “Golpe da Colmeia”, muito embora nem a Abelha-Rainha ou Geometris soubessem o significado daquele termo. Virou-se para Geometris, um sorriso torto cruzando a face, e ordenou que fosse colocada em quarentena imediatamente, com comando de extermínio agendado para aquela mesma noite. Guardas Especiais tomaram Geometris pelas articulações e asas, carregando-a rumo aos salões inferiores da Colmeia, enquanto ela se debatia e aclamava por auxílio.
         Na Câmara-Real, Zang Oso fazia seu famoso discurso de vitória. Falava em altos brados sobre como a transformação que promoveria nas próximas gerações tornaria a Colmeia melhor; como a Abelha-Rainha era fraca ao confiar o trabalho de construção e manutenção daquela fabulosa colônia à seres inferiores; como a manipulação genética que ele, Zang, faria, tornaria a Colmeia imbatível. O monólogo parecia interminável, interrompido ocasionalmente por um ou outro gemido da Abelha-Rainha, prontamente respondido com bofetadas e xingamentos. Sua Majestade encontrava-se completamente só, sentia-se abandonada pelas mesmas abelhas que tanto trabalhou para criar e desenvolver. Via-se soterrada por um desespero profundo.
         Inexplicavelmente o monólogo dera lugar a um curto silêncio, seguido de uma eclosão de vozes enfurecidas. Zang e sua Majestade voltaram-se para a entrada da Câmara Real no exato momento em que esta era tomada de assalto por um verdadeiro enxame de operárias, o zumbido das asas se misturando ao estalar dos ferrões que ocasionalmente encontravam o piso. Em movimentos rápidos, coordenados e precisos, o enxame derrotou com facilidade a Guarda Especial, colocando Zang em posição diametralmente oposta àquela na qual estava momentos antes. A Abelha-Rainha fora libertada enquanto as operárias reuniam os planejadores, Zang entre eles, em uma roda no centro do enxame, ferrões apontando perigosamente para seus corações.
          Em uma reviravolta improvável, as abelhas operárias haviam retomado o controle da Colmeia para sua líder, a Abelha-Rainha, enquanto esta olhava-as tomada por incredulidade. Quando finalmente recuperou os sentidos, pediu para ter uma audiência com a líder daquele grupo formidável, e foi surpreendida com a figura de Geometris emergindo entre suas iguais. A Abelha-Rainha falou pela primeira vez como se estivesse interagindo com outra Abelha-Rainha, a voz carregada de espanto e admiração, questionando como os acontecimentos daquela noite haviam sido possíveis.
         De modo tranquilo, Geometris humildemente requisitou a presença da Abelha-Rainha aos andares inferiores, de modo que pudesse explicar e demonstrar com observações. Arrastaram-se entre os casulos larvais, deparando-se com as unidades de refrigeração e condicionamento de ar, onde Geometris pode apontar suas dúvidas sobre o projeto de concepção daquele maquinário, e mostrar à sua Majestade as soluções práticas, simples e rápidas que seu grupo havia encontrado.
          Das unidades de refrigeração e condicionamento de ar passaram aos habitáculos larvais especiais. A Abelha-Rainha permaneceu calada durante toda a explicação, enquanto Geometris lhe demonstrava os diversos obstáculos que haviam sobrepujado para poderem finalizar a ala B. Ao final, a Abelha-Rainha virou-se para Geometris e lhe disse:
“Eu confiei todo o planejamento e cronograma de tarefas desta Colmeia aos Planejadores, com fé nas qualidades genéticas que apresentavam. Eu lhes pedi para planejar a construção da ala B, maior do que a ala inicial, apenas para dar mais conforto e segurança às larvas, mas não lhes pedi para elaborarem máquinas de refrigeração de ar ou habitáculos especiais. Fui cega a ponto de não ver o que estavam fazendo, fui tola a ponto de não perguntar, e fui insensível a ponto de não me importar o suficiente para vir aqui e testemunhar o resultado dos meus pedidos.
Sem vocês, minhas queridas operárias, nada disso seria possível. Especialmente você, Geometris. Como poderia retribuir o que fizeram por nossa Colmeia?”
A resposta de Geometris continua permeando o pensamento da Abelha-Rainha e da Colmeia até os dias atuais. Suas palavras, embora poucas, estavam carregadas de significado. Eram elas:

         “Será que não seria melhor nos dar uma chance para que possamos descobrir, por conta própria, através de nossas habilidades e talentos, as melhores maneiras de servirmos uns aos outros?”

domingo, 19 de junho de 2016

Entrevista inusitada

Sentado naquela cadeira desconfortável, o filhote esperava ansioso pelo tão sonhado chamado. Pensava nos momentos que vivera até ali, os ensinamentos de seus pais e amigos passavam velozes, teimosos o suficiente para se perderem em meio aos devaneios leoninos. Cada segundo aumentava a angústia no seu estômago, vazio desde a última gazela, elevando sua ansiedade, impulsionada pela juba mal arrumada.
         Finalmente veio o chamado pelo alto falante: “Senhor Leôncio Júnior, estamos prontos para recebê-lo.” O pequeno filhote levantou-se, as pernas trêmulas, e se dirigiu para a porta de mogno a sua frente. Do outro lado, uma cena surpreendente: três leões alfa, trajados em belos ternos de risca de giz, sentavam-se ao centro de um semi-círculo, agrupados por seis leoas extremamente elegantes, todos absortos em suas próprias anotações. A sala era gigantesca, colunas de ouro maciço subiam até encontrarem a abóbada superior, adornadas dos mais variados troféus e prêmios. Uma verdadeira obra-de-arte.
          O filhote sentou-se na cadeira de couro prostrada no meio do semi-círculo, demasiado nervoso para dizer qualquer palavra. O senhor leão ao centro, aparentemente o diretor-alfa, cumprimentou-o, e deu-se início aos minutos mais extensos da vida daquele pequeno felino.
         De volta em casa, o filhote comemorava com a família, incrédulo pelo sucesso. Conseguira a vaga, era agora um autêntico trainee da Companhia Leonina de Alimentos, o explendor de alimentação leonina sub-saariana. Depois do que pareceram dias de churrasco gazelístico, o filhote teve a oportunidade de entender como aquele turbilhão de acontecimentos fizera-o chegar aquele ponto.
       Lembrou de seu pai, Leôncio Sênior, e dos momentos que passaram juntos. Lembrou dos ensinamentos nos esportes leoninos, dos treinos em artes felinais, e das palavras sábias durante as conversas em frente à fogueira. O pequeno Leôncio Júnior entendia como aqueles instantes valorosos tinham afetado suas técnicas, como tinham demonstrado os melhores meios pra se alcançar o sucesso quando se precisa usar a racionalidade plena. Assim, Leôncio Júnior via suas habilidades técnicas como cópias dos ensinamentos de seu pai, e suas consequências eram claras naquele sucesso.
           Mas ainda restava a dúvida, o feedback tinha sido estranho. Suas melhores qualidades, ao menos na visão daqueles leões imponentes, não estavam nas habilidades técnicas, mas na capacidade de relacionamento daquele filhote. Leôncio procurava, em vão, entender como havia adquirido habilidades tão diferentes dos ensinamentos do pai, tão subjetivas à cada um, de modo que sua racionalidade não poderia vê-las como algo além de pouco interessante.
         Neste momento, sua mãe, a majestosa Leona Sênior, entretia um grupo de leões e leoas em divertidas histórias. Leôncio Júnior não havia prestado tanta atenção ao que sua mãe lhe ensinara, tinha o hábito de entender suas palavras como chatice, como supérfluas e que só serviam para enervá-lo. Sabia que ambos se amavam, como mãe e filho, mas Leona Sênior fora uma financista espetacular para a União Internacional dos Felinos, e acabou tendo menos tempo disponível para poder passar com o filhote. No entanto, sempre que a oportunidade se mostrava, ela dava prioridade para o filho, algo que ele só percebia agora, enquanto a admirava entretendo diversos hóspedes.
       Ela sempre estava lá, quando podia e quando prometia, nunca havia quebrado o ritual sagrado. Mesmo que o trabalho estivesse apertado, ela encontrava um tempo para prestigiar o pequeno Júnior em suas apresentações de teatro, nos aniversários dos amigos, nas reuniões em família. Leona sempre dava um jeito de sair do trabalho e comparecer, mais do que isso, acabava se tornando parte vital do evento, reunindo todos com alegria e tranquilidade.
        Então, Leôncio Júnior finalmente entendeu. Agora compreendia de onde herdara aquelas habilidades, estranhas à ele por conta da sua racionalidade estúpida. Finalmente viu que imitava Leona em suas atitudes em grupo, que a via como o melhor exemplo de relacionamento social que conhecia. Leona era uma guerreira, tinha vigor e confiança exalando pela pelagem jovial, e era uma interlocutora fantástica, arrancando risadas, sorrisos e abraços onde quer que passasse.
       Foi Leona que ensinou Júnior como se comportar em meio aos iguais. Ela ensinou-lhe o valor do verdadeiro leão, aquele que consegue esquecer o que existe na aparência e nos atos, e procura a índole interior, o espírito felino que incendeia cada um. Leona mostrou-lhe como a vida não é racional, como cada respiração, cada pulsação, cada gole de água eram mais do que vontade de respirar, de correr ou de se refrescar. Eram atitudes que vinham de desejos interiores, mais do que isso, de necessidades vitais, as quais ninguém poderia negar ou escapar.Dessa forma, a racionalidade estúpida de Leôncio via o que sua magnífica mãe tanto tentara lhe ensinar.
        A entrevista não fora o prêmio daquele dia, agora Leôncio Júnior via com clareza. Seu maior prêmio foi poder reconhecer o verdadeiro valor daquela guerreira, batalhadora, amiga, companheira, arquiteta, guarda e guia, sua mãe, Leona Sênior. Afinal, os ensinamentos maternos estão no sangue, e são inerentes aos filhotes. Funcionam mais no inconsciente, tornando-se imprescindíveis na busca de um equilíbrio emocional e na condução das relações sociais. Sem Leona, Júnior não era um verdadeiro leão.

sábado, 11 de junho de 2016

Um ser humano completo

Em um vilarejo pequeno, o garoto praticava sua nova arte. Fora criado naquele ambiente, conhecia cada aspecto daquela mágica, sua mente a saltar entre os mais diversos protótipos. Em sua frente, prostrado sobre a bancada, a primeira tarefa que o mestre havia lhe passado: deveria copiar, com o maior detalhismo possível, o primeiro elmo forjado pelo velho ferreiro.
       Com pesar nos olhos, o garoto olhou o elmo retorcido a sua frente. Tinha aspecto pueril, quase amador, com o aço carcomido em vários pontos e claras marcas de martelos podiam ser vistas em toda a superfície. Até a viseira era fora de esquadro, o que irritou o garoto. “Cresci sob o manto desse velho ferreiro, e esta foi sua primeira ‘obra’? Isso é perda de tempo.”
          O velho ferreiro, ao observar o tormento no rosto do garoto, se aproximou e disse-lhe: “Meu querido aprendiz, vejo que não tomou sua primeira tarefa com agrado. Para forjar meu primeiro elmo, que é este na sua frente, precisei ouvir sabiamente meu mestre, e seguir seus passos cuidadosamente. Como forma de motivação, dou-lhe a oportunidade de me perguntar sobre qualquer aspecto deste elmo, e prometo que a resposta o ajudará a forjar o seu próprio.”
          Assolado por cinismo e descrença, o garoto indagou ao velho ferreiro quanto tempo havia tomado para forjar aquele elmo. Olhando-o calmamente, o ferreiro respondeu: “Uma semana inteira.
Esta era sua única pergunta, quando terminar, por favor, traga o elmo até minha bancada.”
           Ao ouvir aquela resposta, o garoto foi tomado por euforia e egoísmo simultaneamente. Estava claro que o velho havia mentido, aquele elmo era tão amador que qualquer aprendiz poderia forjá-lo em questão de horas, bastava o tempo para aquecer o forno.
         E assim o garoto começou a forjar seu elmo. Seguiu cada passo à partir da memória, havia observado o velho ferreiro forjar  centenas de elmos como aquele, de qualidade e acabamento superiores. No entanto, para sua surpresa, o garoto foi encontrando novas dificuldades que atrasavam e complicavam o processo. Perdeu a conta de quantas vezes precisou recomeçar por cometer erros primários nos passos intermediários, e se enfureceu ao ver dias ensolarados e noites estreladas passando pelas frestas e janelas da cabana apenas para encontrá-lo vez e outra frustrado e desanimado.
           Ao final de uma semana desistiu das tentativas e levou o que poderia ser a estrutura de um elmo para a bancada do velho ferreiro. Quando depositou-a na bancada, olhou para o velho com derrota e remorso no coração, além de raiva e confusão.
        O velho ferreiro observou longa e atentamente o exemplar do garoto. Ao voltar seus olhos para aquela face jovem, sorriu e disse-lhe: “Meu querido aprendiz, vejo a derrota no seu olhar e sinto a confusão permeando sua mente. Como lhe disse, para forjar meu primeiro elmo, que é este ao lado do seu, precisei ouvir sabiamente meu mestre e seguir seus passos cuidadosamente. Pelo seu esforço e dedicação, tem direito à uma nova tentativa, e à uma nova pergunta.”
          Incrédulo com a calma do velho ferreiro ao contemplar o fracasso dele, o garoto perguntou se o velho havia fracassado também em sua primeira tentativa. Sem retornar o olhar, o velho respondeu calmamente: “Não. Esta era sua única pergunta, quando terminar, por favor, traga o elmo até minha bancada.”
           A resposta enfureceu o garoto, ao mesmo tempo que sentia o corpo arder com o misto de fúria e embaraço em seu coração. Lívido de fúria, deu início à forja, cada passo do novo processo permeado pela frustração de não ter alcançado o mesmo patamar do velho ferreiro. O elmo forjado pelo velho era tão amador, e mesmo assim ele não conseguira chegar próximo depois de tantas tentativas. A confusão crescia cada vez mais em sua mente, transcorrendo para seus braços e incorrendo em maiores erros e recomeços. Parecia ao garoto que cada passo daquele processo havia se tornado mais doloroso, mais penoso, mais complexo e com maior probabilidade de erro do que anteriormente. Encontrara tantas dificuldades que por vezes pensara em desistir, entregar o avental ao mestre e procurar outro ofício.
          Os dias e noites passaram velozes, e sem perceber, o garoto passou semanas trabalhando em seu segundo elmo. Ao terminar, um mês depois da primeira tentativa, levou seu elmo orgulhoso para a bancada do velho, claramente pensando ter superado o próprio mestre.
           Para sua surpresa, o velho ferreiro trouxe um segundo elmo, muito mais trabalhado e adornado do que o primeiro, colocando-o ao lado daquele forjado pelo garoto. Ficou claro, de forma quase instantânea, que o velho havia superado seu aprendiz novamente, mesmo que o trabalho ainda não pudesse ser considerado completamente profissional. Haviam arranhões em boa parte da superfície do elmo, e internamente faltava um acabamento acolchoado, além da viseira continuar fora de esquadro, mas a melhora com relação ao modelo anterior era incrível.
              Desolado, o garoto olhou para o velho com lágrimas raivosas nos olhos, acusando-o de enganá-lo. Irrompeu em calúnias contra o velho ferreiro, tentando desqualificá-lo como um mestre incapaz de transmitir seus ensinamentos e de apreciar o trabalho de seus aprendizes.
          O velho se sentou, pegou o elmo do garoto cuidadosamente e o observou longamente. Revirou aquele elmo em todas as direções, prestou atenção a cada acabamento interno e externo, abriu e fechou a viseira bem alinhada e devolveu o elmo à bancada com um largo sorriso. Olhou no fundo dos olhos do garoto, e disse:
          “Meu querido aprendiz, através de seus olhos vejo que aceitou a derrota e a vergonha em seu espírito. Sente-se, e compare sua segunda tentativa à este outro elmo.”
       O velho colocou o primeiro elmo que fez na bancada, ao lado do elmo forjado pelo garoto. Imediatamente o queixo do garoto caiu em descrença: seu elmo era quase profissional comparado ao primeiro elmo do velho. Havia passado tanto tempo desde que o contemplara pela última vez que havia esquecido de como fora forjado, do amadorismo dos detalhes e do acabamento rústico e tosco. Olhou incrédulo para o próprio elmo, uma sensação de orgulho e confusão assolando o peito. Falou ao velho: “Não entendo, porque está me mostrando este seu elmo? O que está tentando mostrar com isso?”
         E assim, sorridente e calmo, o velho respondeu: “Meu querido aprendiz, contei-lhe que precisei prestar grande atenção no meu mestre e seguir cuidadosamente seus passos. O que não lhe contei foram as perguntas que fiz ao meu mestre, as mesmas que você teve oportunidade de me fazer.”
          “Minha primeira pergunta ao meu mestre foi que me ensinasse as técnicas que eu precisava para forjar meu elmo. Com paciência e muita dedicação, ele me ensinou por 2 meses cada passo dessa maravilhosa arte, tomando o cuidado de me deixar experimentar por conta própria todas as etapas. Ao final dos dois meses, ele me deu novamente a tarefa de forjar o elmo, que conclui em uma semana, e é este que hoje você vê como amador e tosco. O elmo não está completo, porque não fora forjado por um humano completo, meu mestre me explicou quando mostrei a ele.
              Minha segunda pergunta ao meu mestre foi que me mostrasse o destino do elmo, pra quem ele seria forjado. Meu pensamento era usar aquela previsão para planejar melhor minha segunda tentativa, e assim ter como resultado um elmo completo. Ele me levou ao cavaleiro que ordenara o elmo, e me liberou para tirar todas as medidas que julgasse necessário. Era como se tivesse o próprio molde na minha mão, não poderia fracassar nesta segunda tentativa.
              E outros 3 meses se passaram, quando finalmente conclui meu trabalho. Dediquei incontáveis horas a todos os detalhes, e entreguei orgulhosamente meu elmo ao meu mestre, este mesmo elmo que lhe mostrei nesta noite. Ao colocá-lo na bancada, meu mestre sorriu e, sem dizer nada, arrastou-o para o canto, colocando ao seu lado um lindo elmo de cavaleiro real, adornado com pedras preciosas e completamente impecável. A mesma sensação que hoje você sentiu, eu senti naquela ocasião. Sentia-me enganado por ele, desolado por todo aquele tempo, energia e esforço desperdiçados.
          Assim, meu mestre me mostrou que meu elmo também não estava completo, continuava sendo forjado por um humano incompleto. E da mesma forma que ele me mostrou como podemos ser completos, agora é minha vez de lhe mostrar:

             Na primeira tentativa, focamos muito no passado, procurando as melhores técnicas para diminuir o tempo gasto e o esforço empreendido, acreditando que o resultado final não será afetado. Quando fracassamos, nos voltamos ao futuro, contemplando nosso objetivo como um sonho que confunde os sentidos, enebriando as emoções e tirando nosso foco. Os resultados bem sucedidos vem quando unimos as técnicas do passado aos objetivos do futuro, mantendo o foco no presente. 
           Em outras palavras: para ser um ser humano completo, suas ações precisam se basear no passado, manter-se focadas durante o presente e ter seus objetivos futuros bem definidos.”