domingo, 31 de julho de 2016

Uma Tarde no Parque

Créditos: MARY YAMANAKA - Parque do Ibirapuera  1996 (http://mary-yamanaka.blogspot.com.br/2012/01/pintando-do-natural.html)
Um sol maravilhoso irradiava no azul-celeste, iluminando as folhas das árvores e os passeios tortuosos daquele parque, um local de retiro na periferia da cidade movimentada. O pequeno Evols estava sentado no banco rústico de madeira, em uma das praças laterais, apreciando as regalias que estavam no seu colo: um pequeno caderno, uma caneta e uma caixa de madeira em formato de cubo.
Evols abriu a caixa e contemplou o interior, um largo sorriso cruzou sua face ao examinar a  estimada coleção. Haviam verdadeiras raridades naquele pequeno cubículo, valiosas por sua simplicidade e pelo seu poder de influência. O pequeno caderno estava aberto na página de tabulação, um senso de orgulho correndo a espinha até atingir a mente de Evols ao observar o conteúdo de cada ítem ali descrito.
Enquanto estava distraído com os espólios, Evols não reparou que o sorrateiro Quaetilium aproximou-se e sentou à sua esquerda. Chocado com a aparição repentina, Evols fechou apressadamente sua caixa, guardando de qualquer modo o caderno e a caneta em seu interior, e mirou Quaetilium com um olhar de pura perplexidade.
Quaetilium, então, indagou:
- Caro Evols, perdoe a intromissão, vi que estava contemplando admirado esta pequena caixa e fiquei curioso, o que carrega nela?
Antes que Evols pudesse sequer falar as primeiras palavras, Resposinius, o ancião, sentou-se à sua direita e prontamente explanou:
- Ora, pequeno Quaetilium, é claro que trata-se de uma coleção, e das mais preciosas!
- Uma coleção?! Pudera, também sou um colecionador aficionado! Mas diga-me, o que guarda com tanta estima? – indagou Quaetilium.
- Só há uma coisa que se possa colecionar, acima de qualquer outra, é um senso comum: respostas, obviamente! – devolveu, Responsinius de modo assertivo.
Quaetilium, que até aquele momento estava muito animado, desinflou como um balão perfurado por um alfinete. Apenas murmurou: “Ah... respostas. Que legal, bom pro senhor, imagino.”
Evols percebeu que Responsinius não tomou aquela reação com bons olhos. Imperativamente, o ancião ordenou uma explicação: “Como assim, ‘ah...respostas.’?! Está querendo inferir que existe algo melhor para se guardar do que respostas?”
- Respostas são úteis, mas o que guardo à sete chaves são perguntas! – completou Quaetilium.
- Perguntas?! – respondeu um Responsinius aborrecido.            
- Sim, perguntas! Veja, não tenho nada contra respostas, mas nunca trocaria uma pergunta por uma resposta... Não consigo ver o ganho à longo prazo. – explicou Quaetilium.
- Como assim, longo prazo? O que quer dizer? – questionou Responsinius.
“Bom...
Da forma como vejo, respostas são úteis para se ter ao redor, mas também são um pouco tediosas... Quero dizer, elas não parecem participar da eterna dança de transformação do universo, na forma como são. Se você escolher ficar ao lado delas, arriscará perder boa parte das risadas e da graça.
A realidade pode mudar tanto quanto você quiser que ela mude, ou melhor, tanto quanto você escolha vê-la de modo diferente. Uma resposta, estática em sua natureza, faz referência a um momento congelado da realidade. Seu valor só pode ir para baixo. O diamante de hoje pode ser o grafite de amanhã.
Por outro lado, perguntas tem a curiosa característica de continuar nessa dança e, assim, seu valor só tende a aumentar com o passar do tempo. Parece não fazer muito sentido colecionar qualquer coisa que possa perder seu valor com o passar do tempo, não acha?” explicou e indagou Quaetilium, que estava absolutamente eufórico neste momento.
Responsinius tomou um pouco de ar, retornando: “Acredito que ideias tão radicais como essas são parte de uma característica intrínseca à jovens como você, jovem Quaetilium. Como seria possível manter uma coleção destas?!
Quero dizer, é senso comum que perguntas estão sempre correndo para encontrar respostas. Todos sabem que elas raramente sobrevivem ao encontro. As respostas dão base para qualquer nascimento de uma pergunta, são os progenitores da nova geração.
Quanto maior o número de perguntas que uma resposta gera, maior será o seu valor, isso é um caso de lógica básica que falta à juventude hoje. Para se ter o mínimo de assertividade é necessário ter um leque de respostas bem estruturadas, com muita experiência, bem alimentadas e nutridas.
 Você diz que as respostas são um momento estático, mas e o que dizer das perguntas, então? Elas são feitas em um único momento, e se, por fim, se alteram, você não pode dizer que continuam as mesmas, especialmente após várias revisões.
Assim, fica claro pra mim que a melhor coleção à se ter é aquela em que você pode ter base. Como em um edifício, escolho ter pilastras à pisos, e construir os andares com estas fracas, mas bem rodadas, pernas.” completou um triunfante Responsinius, crente de que tinha ganho aquele argumento.
Após algum tempo de reflexão, Evols esperava, ansiosamente, uma indicação de reação por parte de Quaetilium. Em silêncio, aproveitou o momento de pausa para organizar os pensamentos, sendo surpreendido pela fala de jovem sorrateiro:
“Na minha visão, quando uma resposta não serve mais à sua pergunta, ela deve ser descartada, e não entesourada. É apenas o ciclo-de-vida natural delas. Elas geralmente esperneiam e fazem um escândalo quando pedimos para irem embora, especialmente aquelas que ficaram conosco por um longo tempo.
Veja você, estas respostas acabam se sentindo muito importantes com o passar do tempo, ficam cheias de si! Não repeitam ninguém, nem mesmo as perguntas que as originaram! Qual o propósito em manter uma resposta errada se ela vai impedir de se retornar à uma pergunta certa?” considerou Quaetilium, quase que jogando a pergunta ao ar e não propriamente naquele pequeno diálogo.
Responsinius se levantou, voltou-se para os dois jovens colegas que estavam sentados no banco de parque, em meio à tarde ensolarada, e disse-lhes: “Para mim, basta... Já ouvi o suficiente desta juventude rebelde. Tenham um bom dia!”
Evols e Quaetilium se entreolharam, a dúvida estampada nas faces, e permaneceram no banco, em silêncio, por alguns instantes. Quando o sino da igreja ao lado sinalizou o fim de tarde, Quaetilium se despediu e seguiu seu rumo.

Evols demorou-se ainda no banco, os pensamentos absortos na conversa que havia presenciado. De repente, como que por passe de mágica, um estalo veio em sua mente, trazendo consigo a demonstração de como aqueles dois colegas poderiam ter unido esforços, ao invés de vê-los em pontos opostos. Na consciência de Evols, tudo fazia sentido:
“Respostas são extremamente valiosas, porque garantem um ponto-zero, uma referência para o próximo objetivo na árdua jornada. Mas para chegar ao próximo passo é necessário realizar perguntas em cima da resposta-base, do contrário tudo que fará é permanecer congelado no mesmo lugar.
O ciclo do desenvolvimento ficou muito claro agora. As perguntas tem maior valor para um objetivo em mente, enquanto as respostas servem de base para alcançar este objetivo. Ao mesmo tempo, o objetivo, quando alcançado, se torna a nova base de resposta para as próximas etapas, ou seja, as próximas perguntas.
Este ciclo é o que uniria Quaetilium e Responsinius. Um ciclo de perguntas e respostas contínuo, onde um aprende com as descobertas e indagações do outro, em eterna sincronia, crescendo e se desenvolvendo conjuntamente.”

Evols abriu a caixinha em seu colo, tirou o caderno e a caneta, e anetou numa página em branco aquele maravilhoso ensinamento. Guardou sua coleção de ações dentro da caixinha: seu valioso tesouro ganhara um novo membro.

domingo, 24 de julho de 2016

O Caminho da Resiliência

Créditos: Nyctimene (http://nyctimene.deviantart.com/art/The-Phoenix-Project-Egyptian-Bennu-Bird-555321504)

Pulava de galho em galho, tentando fugir de seus perseguidores. Olhava para trás, o suor descendo pela testa, prontamente transformando-se em vapor, misturando-se ao rastro de poeira que deixava. Tentava agitar aquelas asas desengonçadas, as minúsculas patas apalpando os nódulos das árvores, afim de ganhar distância e uma janela pra refresco. “Já estou longe”, Simurg pensou, julgando ser um bom momento para uma pausa sobre uma antiga tamareira.
O descanso durou poucos segundos, a tamareira não foi capaz de suportar o peso de Simurg e rachou, fazendo suas patas quase tocarem a areia desértica. Em imensa agonia, conseguiu prender o bico a outra tamareira próxima, o suficiente para ganhar impulso em direção ao céu. Atingiu poucos centímetros de altura antes de sentir um puxão forte nas caudas, a esperança minguando naquele segundo.Viu, desolado, a abóboda celeste  ficar cada vez mais distante, até sua imagem ficar recortada por frias barras metálicas. Tudo estava acabado, fora enjaulado.
No porão ao qual estava aprisionado pode rever toda aquela sequência maluca de acontecimentos. Pensou na sua infância, nos momentos vividos com seu meio-irmão Grypus, desde as confissões particulares até as aventuras em grupo. Por algum motivo que não conseguia entender, Grypus sempre vira Sigmur como um ser inferior, muito embora tenham sido criados no mesmo lar. Em parte, havia uma certa lógica na visão de Grypus, uma vez que Sigmur fora adotado pela família de Grypus quando ainda era uma pequena ave. Haviam tomado aquela atitude por pensarem que fosse um órfão de alguma família de Bennus ao redor, amargando a decepção quando o pequeno Sigmur crescera.
Claramente havia algo que diferenciava Sigmur de seus parentes e colegas. Os Bennus eram pássaros elegantes, com corpo similar ao dos flamingos, as penas semelhantes às de um pavão com tonalidade azulada em um lindo degradê que terminava na cabeça. Acima do bico, uma faixa preta recobria triangularmente os olhos, dando um aspecto feroz e intimidador àquelas magníficas criaturas.
Sigmur, por outro lado, era bem diferente. Quando pequeno, possuía características muito semelhantes aos seus meio-parentes, com a diferença de ter quatro caudas ao invés de uma única, e de seu  corpo ter uma coloração rosa salmonada, mais próxima de um flamingo do que de um Bennu. Fora alvo de brincadeiras maldosas por parte de seus semelhantes, especialmente seu irmão Grypus, cujo passatempo favorito na infância fora caçoar e mal-tratar Sigmur.
Mesmo recebendo esse tratamento, Sigmur era incrivelmente fiel ao seu meio-irmão e sua família adotiva, bem como seus semelhantes. Não era dos mais habilidosos, mas seu ímpeto, sua determinação em ajudar como pudesse e sua lealdade eram diferenciadas mesmo entre os Bennus, conferindo os principais traços da personalidade de Sigmur.
Não por acaso, agora percebia, ele estava naquela enrascada devido à sua lealdade ao meio-irmão. Havia executado o plano de Grypus à risca, mantendo as esperanças de que suas ações gerassem o retorno do fogo aos Bennus, mas fora atraído para uma arapuca. Antes que pudesse sequer se aproximar de seu objetivo, alcançar o fabuloso farol de Yggdrasil, considerado o berço do reino e restrito aos membros da família real, fora interceptado por enviados da guarda Bennu. Agora aprisionado e em solidão, Sigmur via a esperança esvair de seu coração com a aproximação de seu julgamento.
Seus piores pesadelos se confirmaram ao receber a sentença de Sua Alteza Bennu, estava permanentemente exilado. Relegado à se contentar com a própria sorte, Sigmur vagou indefinidamente pela imensidão do deserto. Desnutrido e desolado, andava sem rumo e sem prumo, buscando um novo motivo para sua existência. Por conta de seu caminhar descuidado, foi engolido por um buraco na areia, caindo na escuridão abaixo. Estranhou a sensação em suas patas, com certeza estava em momento de confusão mental, pois sentia galhos e folhas. Em um sopro de esperança, torceu as garras e conseguiu parar a queda-livre, permanecendo de ponta-cabeça enquanto a areia torrenciava túnel abaixo.
Quando olhou ao redor, o coração acelerou e o sangue começou a fluir velozmente. Não poderia ser verdade, estava sonhando, definitivamente. Não conseguia acreditar no que seus olhos revelavam, um misto de confusão, incerteza, medo e esperança rodeavam seu coração e mente.
À sua frente estava uma caverna imensa, o chão recoberto por árvores com troncos fortes e baixa estatura, as copas fazendo um lindo tapete verde-musgo no piso. As paredes eram de pedra bruta bem escuras, adornadas de imagens e pinturas incríveis. Mais inacreditável era o conteúdo destas imagens.
Sigmur observou a sequência de imagens à sua frente que descreviam claramente toda a vida de uma ave idêntica à Sigmur. Não era um Bennu típico, pois tinha a coloração rosada de Sigmur, a baixa estatura, e a cauda dividida em quatro pontas. Sigmur viu aquilo que assumiu como um parente sair de uma nuvem de poeira, empoleirado nas árvores, e transportando muitos objetos de uma única vez, algo que espantou Sigmur (achava que era muito fraco, embora fosse um dos encarregados no transporte de mantimentos para os Bennus).
As duas imagens ao fim assustaram Sigmur. Na primeira estava seu semelhante à frente do farol de Yggdrasil com a cabeça sobre o farolete, mas não conseguia distinguir exatamente o que ele fazia. Na imagem seguinte, o farol estava aceso e seu semelhante novamente envolto em poeira. Sigmur observou algumas ranhuras na lateral da última ilustração e agitou as asas para poder limpar a grossa camada de poeira. Se impressionou ao perceber que era a seguinte frase: “A felicidade está em cada uma das suas ações, e pode ser encontrada nas horas mais escuras. Para isso, basta lembrar de acender uma luz.”
                -
          No saguão principal do palácio real encontravam-se Grypus e seus asseclas, que ocupavam-se com um fabuloso banquete. A comemoração tinha por mérito a tomada do controle das pirâmides reais e dos campos de plantio, um golpe engenhoso tramado pelo próprio Grypus (usara a escuridão para movimentar suas tropas e tomar o palácio de assalto). Sem a dádiva do fogo iluminando o farol, o poder real (que emanava da luz e do calor) estava para ser extinto. Grypus aproveitara o momento de fraqueza e tomara o controle do reino, garantindo amplos poderes à si e seus seguidores. O reino estava mergulhado no medo e na falta de esperança, sem vislumbrar uma saída para aquela situação calamitosa.
         Neste momento de desespero, Anka, uma pequena Bennu, mirou o céu orando por um milagre. Qual não foi sua surpresa ao avistar uma luz avermelhada no horizonte obscuro, que foi se tornando cada vez mais intensa até se transformar em uma ave impetuosa jamais vista por Anka. Suas patas eram mais curtas do que as de um Bennu, tinha penugem de águia com tonalidade vermelho-dourada e quatro caudas alongadas. Todo seu corpo estava envolto em  chamas ardentes.
        A criatura majestosa se empoleirou na tamareira mais próxima, suas chamas diminuíram de intensidade, de modo que Anka pode contemplar seu rosto. Não conseguia acreditar no que via, não era possível! Era Sigmur, mas estava muito diferente do Sigmur que conhecia. Estava, se é que isso era possível, mais intenso, mais impetuoso, mais vivo.
        Sigmur acenou para a pequena Bennu, abriu suas magníficas asas e decolou em direção ao farol de Yggdrasil. Anka observou Sigmur se empoleirar no topo do farol, mas não conseguiu ver o que fazia lá. Quando Sigmur se afastou, uma chama vibrante saia da ponta do farol, cobrindo o palácio, as pirâmides e o reino com uma luz resplandecente. Anka também viu, em completo espanto, quando Sigmur entrou no palácio real e, pouco depois, retornou acompanhado dos aliados de Grypus, que carregavam seu líder amarrado e amordaçado. Mas o momento de maior incredulidade veio quando, em uma demonstração inigualável de valor, Sigmur perdoou Grypus e libertou-o, com autorização do poder real.
        Em uma reviravolta inacreditável, Sigmur havia reacendido a chama da esperança no reino ao mesmo tempo em que conquistara a confiança de seus antigos perseguidores e algozes. Grypus se aproximou de Sigmur, o embaraço e a culpa estampados na face, olhando o irmão com orgulho. Finalmente, declarou com voz embargada:

        “Agora posso perceber meu maior erro, querido irmão. Finalmente vejo que as circunstâncias do nascimento de um ser são irrelevantes. Pouco importa onde, como ou de que forma se entra neste misterioso mundo. Por outro lado, o que escolhemos fazer com o dom da vida determina quem somos de fato."     

domingo, 3 de julho de 2016

Realidade Cinzenta

O alçapão estava entreaberto, ergueu-o com facilidade escorregando pela fresta aparente, e entrou na adega. Os olhos de Visus inundaram-se em êxtase no mesmo segundo que confirmaram o prêmio adquirido: uma adega inteira de vinhos espetaculares para degustar completamente à vontade. E o melhor, como era o costume entre os minúsculos Clurichauns:  Visus iria desfrutar daquele banquete absolutamente só. Mal conseguia conter a alegria naquele momento!
Com os olhos ainda turvos, saltitou entre os toneis cinzentos de modo a escolher as primeiras vítimas e, como de costume, perdeu o interesse em fazer jogos mentais rapidamente, atacando ferozmente a barrica a sua frente. O vinho escoava pela torneira e alcançava a boca ansiosa de Visus antes de tocar o solo, o líquido cinza claro refletido pela luz prata que pairava pelo pequeno alçapão.
A felicidade enchia a mente de Visus à medida que sua pequena barriga inflava com o líquido armazenado, um dos efeitos colaterais odiáveis daquela experiência rotineira. Visus lutou com todas as forças para suportar a enxurrada de hormônios que tomou conta de seu cérebro, vislumbrando os efeitos maravilhosos que sentiria em alguns minutos (fizera questão de manter um jejum de água apenas para potencializar os efeitos maravilhosos do elixir etílico).
Por fim, a felicidade deu lugar à esperada dor de cabeça, a sensação de borboletas voando no estômago, o gosto amargo na língua. Visus estava no paraíso, sua visão enrolava e acinzentava à medida que os efeitos ficavam mais intensos.
Depois do que pareciam horas de dores maravilhosas, enjôos dignos de travessias oceânicas e um pouco de sono (outro contratempo detestável dessa experiência), Visus recobrou a consciência e olhou em sua volta, tentando reconhecer o local onde estava.
O chumbo da madeira dos suportes contrastava com os toneis cinzentos e com o cinza claro do vinho derramado no chão, criando uma imagem conhecida ao pequeno Clurichaun, o mundo cinzento ao qual estava habituado. Pode constatar que estava na velha adega do senhor Otis, algo que aumentou seu mal-humor típico, pois sabia que os vinhos daquele velho Leprechaun eram da pior qualidade. Levantou-se com dificuldade e conseguiu sair do alçapão, apenas para dar de cara com o velho Otis e seu sobrinho, Oculus. Visus conhecia Oculus de vista, mas nunca havia ficado cara-a-cara com seu meio-primo, e não gostou da primeira imagem que teve de seu meio-parente.
Diferente de Visus, Oculus era um Leprechaun. Era mais baixo do que Visus (media algo em torno de 50cm), tinha um porte atlético e exibia um sorriso escandalosamente sincero, algo que irritava profundamente Visus e seus companheiros Clurichauns. Oculus trazia um cachimbo cinza chumbo pendurado nos lábios, vestia uma jaqueta cinza claro de couro e sapatos com fivelas, além de um horripilante chapéu de ponta prateado, também afivelado. Aquela indumentária causou antipatia e desgosto à Visus, piorando seu julgamento de seu meio-primo.
Como era de costume, Visus estava perdido em pensamentos acinzentados enquanto o velho Otis ralhava com ele e seu meio-primo Oculus o observava inquieto. Após muitas lições não ouvidas, palavras jogadas ao vento e algumas ameaças físicas, Visus viu-se livre da horrível presença do velho Otis, permanecendo aprisionado ao seu meio-primo, que passou a segui-lo e a observar atentamente suas ações.
Para tentar se desvencilhar de Oculus, Visus empregou a principal tática dos Clurichauns: reclamar sobre os grandes feitos dos Leprechauns. Era uma arma poderosa, afinal, poderia se encontrar defeito em todas as ações daqueles Leprechauns alegremente estúpidos, desde uma simples colheita de trevos até a principal atividade da vila, a caça aos tesouros. Visus sempre achara aquela atividade, em particular, extremamente monótona, visto que os pequenos Leprechauns empenhavam meses de trabalho para garantir um pequeno saco com moedas prateadas.
As reclamações sobre os grandes feitos deram lugar às indagações sobre o cotidiano. Visus atacava ferozmente aqueles simpáticos seres, a ira e o desprezo misturados nas palavras ácidas que ele proferia à Oculus, ridicularizando a forma alegre e viva que seus meio-parentes tinham de encarar aquela existência vazia.
Depararam-se com duas Leprechauns brincando com seus potes dourados. Visus comentou: “Veja Oculus, esses dois seres insignificantes trabalhando conjuntamente. Vê-se que se encontram em estado de euforia plena, como se nada mais importasse além dos estúpidos utensílios em suas minúsculas mãos. Aquela vestida de branco parece mais alegre, apenas se importando em observar sua amiga aventurar-se entra essas pedras, seu longo vestido negro esvoaçando por aí. Como algo minimamente bom pode sair dessa interação?!”
À princípio, Oculus achou aquele comentário muito estranho. Ele via as meninas cheias de vivacidade, em suas vestimentas tradicionais de Leprechaun, utilizando seu precioso tempo para realizarem as atividades primorosas que somente aquela idade poderia proporcionar. Virando-se para Visus, disse-lhe: “Querido parente, por favor, observe atentamente esta cena.”
Visus voltou-se para aqueles seres minúsculos, o tédio misturado ao desprezo corriam sua mente e seu instinto. Fez esforço para focar na atividade insignificante daquelas criaturas, apenas para ser cruelmente surpreendido: a Leprechaun de preto começou a retirar moedas de prata do pote de sua colega. Ao invés de retribuir tal ação com mesma intensidade, a colega de branco levantou-se calmamente, colocando-se entre sua amiga e seu valioso tesouro. Em seguida, argumentou com sua igual que aquela atitude não era aceitável, e demonstrou o sentimento gerado através de poucas palavras, poderosas mensagens.
Sua colega de preto assentiu por cada argumento, a feição sendo transformada por cada palavra, passando da ganancia e da soberba para a redenção e a compaixão. Humildemente devolveu as moedas de prata, apenas para ser recebida com um largo sorriso e um abraço sincero.
Algo na mente de Visus estava errado, aquilo era inconcebível! Como uma criatura pode abrir mão da maravilhosa solidão e da possessão para ter um simples sorriso de volta? Qual foi o ganho que aquela Leprechaun teve? Externou este último comentário à Oculus, tendo como resposta a seguinte frase: “É necessária muita coragem para se contrapor à seus inimigos, mas é necessária ainda mais coragem para se contrapor aos seus amigos.”
Foi como se uma erupção de emoções tivesse estourado na mente de Visus, todas agonizantemente felizes e encantadoras. Inicialmente Visus fez um esforço hercúleo pra não dar atenção àquele mar de sentimentos, mas foi vencido ao abrir os olhos.
Visus não acreditava no que via, era absurdamente louco demais para sua mente. Via algo mais do que o mundo cinzento que sempre o cercou. Era loucura, sabia, afinal aquele mundo sempre fora composto por um degradê cinzento. Mas aquela cena marcou-o profundamente, algo que nunca esperara sentir: as duas Leprechauns trajavam casacos verdes, uma tendo um tom um pouco mais claro do que o da colega, com sapatos avermelhados recobertos por uma fivela dourada em cinta marrom. O pigmento de suas peles passara daquele cinza-claro para um rosa-salmonado, refletido intensamente pela luz solar.
Sua mente discorria em pensamentos loucos tentando alcançar alguma compreensão sobre aquela situação. Não entendia como aquele mundo poderia existir, ou mesmo, como sua mente havia se tranformado daquela forma. Olhou ao redor, e cada nova imagem que encontrava seus olhos vibravam com as mais lindas cores, os mais vívidos tons. Viu o sol dourado iluminar o pedaço de terra marrom em seus pés, viu as casas dos seus meio-parentes Leprechauns, um degradê que ia de um intenso azul-celeste para um verde-limão. A jaqueta de couro, outrora cinza claro, passara para um verde-bandeira magnífico, que combinava muito bem com os sapatos verde-musgo afivelados (a fivela trazia um trevo verde-limão adornado). A barba em seu rosto passara do pálido cinza tradicional para um vermelho vibrante, e até aquele cachimbo transformara-se em uma verdadeira obra prima feito de raiz de roseira.
Visus estava incrédulo, seu mundo fora bagunçado em apenas uma ação, e pior, uma ação que ele sempre considerou desprezível. Seu meio-parente Oculus olhava-o com aquele familiar sorriso nos lábios, o que intrigou Visus e o levou a questioná-lo sobre as razões por trás daquela louca transformação. Oculus disse-lhe:
“Visus, você passou a vida como um Clurichaun, isolado e ávido por bebidas, dores e solidão. A falta de motivação para se engajar em relações frutíferas por conta de valores pessoais levou-o a ver todos como inimigos, sedentos por todas as posses e alegrias que você havia arduamento acumulado. Não demorou muito para tornar-se amargo, mal-humorado, ranzinza e, claro, cada vez mais só.
 No entanto, essa visão acabou privando-o de aventuras explêndidas, de ensinamentos valiosos e de choques de valores com seus iguais. Como você vê os acontecimentos de hoje?”

Depois de muitos minutos pensando, Visus respondeu:
“Não importa que o ser seja meu amigo ou inimigo. O importante é que todo ser pode ser meu professor.”
Visus olhou para baixo, e viu seu antigo sapato negro transformar-se no belo sapato verde-musgo afivelado. Sua blusa cinza rasgada dera lugar a uma suntuosa jaqueta verde-bandeira. Colocou as mãos no queixo esguio, apenas pra ser surpreendido com uma espessa barba. A antiga boina carcomida deu lugar ao chapéu verde afivelado.
De Clurichaun passou a Leprechaun, o mal-humor deu lugar a alegria contagiante, cada nova relação trazendo mais tonalidades para aquela louca realidade. Seu mundo cinzento fora recoberto por um degradê multi-colorido. Visus sentia-se, enfim, pleno.