domingo, 26 de junho de 2016

A Colmeia


Arrastando-se entre casulos larvais, as pequenas operárias alimentavam e resguardavam as novas gerações daquela sociedade magnífica, trabalhando incessantemente. O zumbido da Colmeia aumentava com a aproximação das campeiras, o precioso elixir dos pequenos artrópodes envolto em suas asas e reservatórios. As jovens abelhas sonhavam com o dia em que poderiam ver os campos de flores e ser componentes vitais do funcionamento da Colmeia.
Cuidando carinhosamente dos recém-nascidos, limpavam exaustivamente cada casulo, ao ponto de tornar a cerâmica das paredes praticamente transparente. Enquanto atendiam seus pequenos irmãos, indefesos no estágio larval em que se encontravam, as operárias podiam acompanhar a movimentação das veteranas: as abelhas nutrizes, as receptoras, as construtoras, as guerreiras e as campeiras. Todas trabalhando incansavelmente pela querida Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema, responsável por conceber as várias gerações de habitantes daquela colônia maquinista.
          Dentre estas operárias encontrava-se Geometris, jovem operária de apenas 3 dias, considerada uma profissional e exemplo de limpadora pelos seus pares e irmãos mais novos. Seu nome, um apelido que ganhara após a grande "Batalha Vespeira", veio pela utilização de uma técnica de voo até então desconhecida, e que provou ser a chave para o sucesso da Colmeia: um voo geométrico, em formato de oito, que indicava os pontos fracos e os flancos do inimigo. Sem Geometris, a Colmeia jamais teria sobrevivido, todos concordavam. Sua fama fora às alturas quando descobriram que era apenas uma operária com 60 horas de vida, um feito recorde até mesmo para aquela Colmeia profissional.
          Caminhava entre seus pares, averiguando os serviços realizados, espalhando elogios ou conselhos onde fossem necessários, a preocupação do bem-comum sempre acompanhando-a nos pensamentos. Tinha a mente envolta na construção da ala B, atualizada segundo as novas técnicas apídeas para abrigo e manutenção de larvas, que serviria para abrigar o novo lote de irmãos e irmãs, escalonado para o dia seguinte. A construção estava no seu ponto final, e agora a atenção das operárias voltava-se para os mínimos detalhes interiores, de modo a garantir a segurança e o conforto dos novatos.
          Ao acompanhar a ativação das unidades de refrigeração e condicionamento de ar, imediatamente as operárias perceberam que a temperatura nos casulos da ala atual (ala A) também havia se alterado, e as pequenas larvas começavam a agonizar por conta do frio intenso. Precisaram desligar todas as unidades imediatamente de modo a evitar uma catástrofe maior, e logo se reuniram ao redor de Geometris afim de discutir o ocorrido.
          Inicialmente, o grupo negou qualquer erro no projeto daquelas engenhocas. Não faziam ideia de como funcionavam internamente, mas tinham total convicção nos planejadores reais (a casta de conselheiros com controle sobre todas as funções práticas da Colmeia) que sequer ousaram questionar uma eventual falha de projeto. Sabiam que suas ordens vinham diretamente da Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema e amada mãe-líder, portanto não poderiam apresentar funcionamento indevido ou complexidade de confecção, afinal as humildes operárias eram responsáveis pela construção e operação de tal maquinário.
           Como não poderiam aceitar uma falha de projeto por convicção genética, o grupo logo aventurou-se nas possibilidades para solucionar o caso, chegando à conclusão que poderiam atingir o mesmo objetivo se criassem buracos de ventilação nas paredes externas da Colmeia. Por conta da segurança, entendiam que os buracos precisavam ser pequenos, com diâmetro equivalente à ponta de seus ferrões, o que poderia criar obstáculos na circulação de ar. Solucionaram o caso de modo conjunto, guiadas por Geometris, de modo que a Colmeia ficou completamente revestida de minúsculos dutos e entradas de ar.
           No dia seguinte, enquanto fiscalizava a finalização da ala B, Geometris e seus pares foram novamente surpreendidos com outra interrupção inesperada. Dessa vez, a causa estava na implantação dos novos habitáculos larvais, especialmente desenhados para impactar o desenvolvimento das novas gerações, garantindo maior qualidade e controle. Perceberam que a parte inferior era muito retangular, o que poderia ocasionar asfixia nos novatos comprometendo seu crescimento pleno. O que tornava essa situação incomum era o fato de que a ordem para a implantação destes habitáculos partira do mesmo grupo de planejadores reais, algo que causou incômodo entre as operárias.
         Rapidamente colocaram as dúvidas sobre o projeto de lado (afinal, precisavam confiar nas boas intenções de seus superiores) e se reuniram para resolver este novo empecilho. Elaboraram um estratagema para alargar o bocal inferior dos habitáculos, o que seria feito em duplas para que uma abelha pudesse supervisionar e auxiliar o seu par. Novamente delegaram à Geometris a liderança daquela empreitada, o que provou ser um fator vital no sucesso da estratégia. Pouco antes dos novatos serem entregues à ala B todos os habitáculos haviam sido alargados. As novas companheiras de colônia foram ajeitadas confortavelmente, e logo o som de gritaria e choradeira tomou conta do ambiente, demonstrando que o esforço daquelas operárias havia sido bem sucedido.
          Naquela noite, Geometris não pode descansar em seu casulo, envolta em pensamentos que variavam desde sua promoção iminente (seria elevada para abelha-nutriz no próximo dia, responsável pela alimentação das novas gerações), aos problemas que seu grupo encontrou na construção da ala B; das dúvidas com relação aos projetos ordenados pelos planejadores reais, até o tão sonhado dia em que se tornaria abelha-campeira, o cargo mais alto de uma operária. Sua noite mal-dormida refletiu-se na manhã seguinte durante a operação de transição de cargo, onde teve a infelicidade de cochilar enquanto sua Majestade falava às novas abelhas-nutrizes. Por sorte, nenhum de seus pares percebeu o momento de fragilidade, do contrário teria sofrido punições severas.
       Com o peito estufado de orgulho, Geometris inflou-se ao ver a euforia de seus pares com sua conquista. De longe fora a operária mais ovacionada da cerimônia, algo que não passou despercebido aos olhos da querida Abelha-Rainha, ocasionando um convite para reunião entre Geometris e sua Majestade Suprema. Acompanhadas pelos olhares de desaprovação dos planejadores reais, sua Majestade e Geometris se dirigiram para a Câmara Real, tendo uma conversa calorosa e duradoura.
          De repente, a entrada da Câmara Real fora tomada pelos Planejadores Reais e sua Guarda Especial, que prontamente envolveram Geometris e a Abelha-Rainha em um círculo mortal de ferrões nervosos, todos apontados para as duas abelhas no centro. Indignada com a atitude de seus conselheiros, sua Majestade olhava incrédula para a face de seu planejador mais querido, Zang Oso, ordenando uma explicação imediata para aquela atitude traidora.
        Ignorando os chamados de sua líder, Zang virou-se para seus companheiros dando ordens para tomarem de assalto a ala B e iniciarem aquilo que chamou de “Golpe da Colmeia”, muito embora nem a Abelha-Rainha ou Geometris soubessem o significado daquele termo. Virou-se para Geometris, um sorriso torto cruzando a face, e ordenou que fosse colocada em quarentena imediatamente, com comando de extermínio agendado para aquela mesma noite. Guardas Especiais tomaram Geometris pelas articulações e asas, carregando-a rumo aos salões inferiores da Colmeia, enquanto ela se debatia e aclamava por auxílio.
         Na Câmara-Real, Zang Oso fazia seu famoso discurso de vitória. Falava em altos brados sobre como a transformação que promoveria nas próximas gerações tornaria a Colmeia melhor; como a Abelha-Rainha era fraca ao confiar o trabalho de construção e manutenção daquela fabulosa colônia à seres inferiores; como a manipulação genética que ele, Zang, faria, tornaria a Colmeia imbatível. O monólogo parecia interminável, interrompido ocasionalmente por um ou outro gemido da Abelha-Rainha, prontamente respondido com bofetadas e xingamentos. Sua Majestade encontrava-se completamente só, sentia-se abandonada pelas mesmas abelhas que tanto trabalhou para criar e desenvolver. Via-se soterrada por um desespero profundo.
         Inexplicavelmente o monólogo dera lugar a um curto silêncio, seguido de uma eclosão de vozes enfurecidas. Zang e sua Majestade voltaram-se para a entrada da Câmara Real no exato momento em que esta era tomada de assalto por um verdadeiro enxame de operárias, o zumbido das asas se misturando ao estalar dos ferrões que ocasionalmente encontravam o piso. Em movimentos rápidos, coordenados e precisos, o enxame derrotou com facilidade a Guarda Especial, colocando Zang em posição diametralmente oposta àquela na qual estava momentos antes. A Abelha-Rainha fora libertada enquanto as operárias reuniam os planejadores, Zang entre eles, em uma roda no centro do enxame, ferrões apontando perigosamente para seus corações.
          Em uma reviravolta improvável, as abelhas operárias haviam retomado o controle da Colmeia para sua líder, a Abelha-Rainha, enquanto esta olhava-as tomada por incredulidade. Quando finalmente recuperou os sentidos, pediu para ter uma audiência com a líder daquele grupo formidável, e foi surpreendida com a figura de Geometris emergindo entre suas iguais. A Abelha-Rainha falou pela primeira vez como se estivesse interagindo com outra Abelha-Rainha, a voz carregada de espanto e admiração, questionando como os acontecimentos daquela noite haviam sido possíveis.
         De modo tranquilo, Geometris humildemente requisitou a presença da Abelha-Rainha aos andares inferiores, de modo que pudesse explicar e demonstrar com observações. Arrastaram-se entre os casulos larvais, deparando-se com as unidades de refrigeração e condicionamento de ar, onde Geometris pode apontar suas dúvidas sobre o projeto de concepção daquele maquinário, e mostrar à sua Majestade as soluções práticas, simples e rápidas que seu grupo havia encontrado.
          Das unidades de refrigeração e condicionamento de ar passaram aos habitáculos larvais especiais. A Abelha-Rainha permaneceu calada durante toda a explicação, enquanto Geometris lhe demonstrava os diversos obstáculos que haviam sobrepujado para poderem finalizar a ala B. Ao final, a Abelha-Rainha virou-se para Geometris e lhe disse:
“Eu confiei todo o planejamento e cronograma de tarefas desta Colmeia aos Planejadores, com fé nas qualidades genéticas que apresentavam. Eu lhes pedi para planejar a construção da ala B, maior do que a ala inicial, apenas para dar mais conforto e segurança às larvas, mas não lhes pedi para elaborarem máquinas de refrigeração de ar ou habitáculos especiais. Fui cega a ponto de não ver o que estavam fazendo, fui tola a ponto de não perguntar, e fui insensível a ponto de não me importar o suficiente para vir aqui e testemunhar o resultado dos meus pedidos.
Sem vocês, minhas queridas operárias, nada disso seria possível. Especialmente você, Geometris. Como poderia retribuir o que fizeram por nossa Colmeia?”
A resposta de Geometris continua permeando o pensamento da Abelha-Rainha e da Colmeia até os dias atuais. Suas palavras, embora poucas, estavam carregadas de significado. Eram elas:

         “Será que não seria melhor nos dar uma chance para que possamos descobrir, por conta própria, através de nossas habilidades e talentos, as melhores maneiras de servirmos uns aos outros?”

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