Cuidando
carinhosamente dos recém-nascidos, limpavam exaustivamente cada casulo, ao
ponto de tornar a cerâmica das paredes praticamente transparente. Enquanto
atendiam seus pequenos irmãos, indefesos no estágio larval em que se
encontravam, as operárias podiam acompanhar a movimentação das veteranas: as
abelhas nutrizes, as receptoras, as construtoras, as guerreiras e as campeiras.
Todas trabalhando incansavelmente pela querida Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema,
responsável por conceber as várias gerações de habitantes daquela colônia maquinista.
Dentre
estas operárias encontrava-se Geometris, jovem operária de apenas 3 dias,
considerada uma profissional e exemplo de limpadora pelos seus pares e irmãos mais
novos. Seu nome, um apelido que ganhara após a grande "Batalha Vespeira", veio
pela utilização de uma técnica de voo até então desconhecida, e que provou ser
a chave para o sucesso da Colmeia: um voo geométrico, em formato de oito, que
indicava os pontos fracos e os flancos do inimigo. Sem Geometris, a Colmeia
jamais teria sobrevivido, todos concordavam. Sua fama fora às alturas quando
descobriram que era apenas uma operária com 60 horas de vida, um feito recorde até mesmo para aquela Colmeia profissional.
Caminhava
entre seus pares, averiguando os serviços realizados, espalhando elogios ou
conselhos onde fossem necessários, a preocupação do bem-comum sempre acompanhando-a
nos pensamentos. Tinha a mente envolta na construção da ala B, atualizada segundo
as novas técnicas apídeas para abrigo e manutenção de larvas, que serviria para
abrigar o novo lote de irmãos e irmãs, escalonado para o dia seguinte. A
construção estava no seu ponto final, e agora a atenção das operárias
voltava-se para os mínimos detalhes interiores, de modo a garantir a segurança
e o conforto dos novatos.
Ao
acompanhar a ativação das unidades de refrigeração e condicionamento de ar,
imediatamente as operárias perceberam que a temperatura nos casulos da ala
atual (ala A) também havia se alterado, e as pequenas larvas começavam a agonizar
por conta do frio intenso. Precisaram desligar todas as unidades imediatamente
de modo a evitar uma catástrofe maior, e logo se reuniram ao redor de Geometris afim de discutir o ocorrido.
Inicialmente,
o grupo negou qualquer erro no projeto daquelas engenhocas. Não faziam ideia de
como funcionavam internamente, mas tinham total convicção nos planejadores
reais (a casta de conselheiros com controle sobre todas as funções práticas da Colmeia) que sequer ousaram questionar uma eventual falha de projeto.
Sabiam que suas ordens vinham diretamente da Abelha-Rainha, sua Majestade Suprema
e amada mãe-líder, portanto não poderiam apresentar funcionamento indevido ou complexidade de confecção, afinal as humildes operárias eram responsáveis pela
construção e operação de tal maquinário.
Como
não poderiam aceitar uma falha de projeto por convicção genética, o grupo logo
aventurou-se nas possibilidades para solucionar o caso, chegando à conclusão
que poderiam atingir o mesmo objetivo se criassem buracos de ventilação nas paredes externas da Colmeia. Por conta da segurança, entendiam que os buracos precisavam
ser pequenos, com diâmetro equivalente à ponta de seus ferrões, o que poderia
criar obstáculos na circulação de ar. Solucionaram o caso de modo conjunto,
guiadas por Geometris, de modo que a Colmeia ficou completamente revestida de
minúsculos dutos e entradas de ar.
No
dia seguinte, enquanto fiscalizava a finalização da ala B, Geometris e seus
pares foram novamente surpreendidos com outra interrupção inesperada. Dessa
vez, a causa estava na implantação dos novos habitáculos larvais,
especialmente desenhados para impactar o desenvolvimento das novas gerações,
garantindo maior qualidade e controle. Perceberam que a parte inferior era
muito retangular, o que poderia ocasionar asfixia nos novatos comprometendo
seu crescimento pleno. O que tornava essa situação incomum era o fato de que a
ordem para a implantação destes habitáculos partira do mesmo grupo de
planejadores reais, algo que causou incômodo entre as operárias.
Rapidamente
colocaram as dúvidas sobre o projeto de lado (afinal, precisavam confiar nas
boas intenções de seus superiores) e se reuniram para resolver
este novo empecilho. Elaboraram um estratagema para alargar o bocal inferior
dos habitáculos, o que seria feito em duplas para que uma abelha pudesse
supervisionar e auxiliar o seu par. Novamente delegaram à Geometris a liderança
daquela empreitada, o que provou ser um fator vital no sucesso da estratégia.
Pouco antes dos novatos serem entregues à ala B todos os habitáculos haviam
sido alargados. As novas companheiras de colônia foram ajeitadas confortavelmente,
e logo o som de gritaria e choradeira tomou conta do ambiente, demonstrando que
o esforço daquelas operárias havia sido bem sucedido.
Naquela
noite, Geometris não pode descansar em seu casulo, envolta em pensamentos que
variavam desde sua promoção iminente (seria elevada para abelha-nutriz no próximo dia, responsável pela alimentação das novas gerações), aos problemas que seu
grupo encontrou na construção da ala B; das dúvidas com relação aos projetos
ordenados pelos planejadores reais, até o tão sonhado dia em que se tornaria abelha-campeira, o cargo mais alto de uma operária. Sua noite mal-dormida refletiu-se na manhã seguinte durante a
operação de transição de cargo, onde teve a infelicidade de cochilar enquanto
sua Majestade falava às novas abelhas-nutrizes. Por sorte, nenhum de seus pares
percebeu o momento de fragilidade, do contrário teria sofrido punições severas.
Com
o peito estufado de orgulho, Geometris inflou-se ao ver a euforia de seus pares
com sua conquista. De longe fora a operária mais ovacionada da cerimônia, algo
que não passou despercebido aos olhos da querida Abelha-Rainha, ocasionando um convite para reunião entre Geometris e sua Majestade Suprema. Acompanhadas
pelos olhares de desaprovação dos planejadores reais, sua Majestade e Geometris
se dirigiram para a Câmara Real, tendo uma conversa calorosa e duradoura.
De
repente, a entrada da Câmara Real fora tomada pelos Planejadores Reais e sua
Guarda Especial, que prontamente envolveram Geometris e a Abelha-Rainha em um
círculo mortal de ferrões nervosos, todos apontados para as duas abelhas no
centro. Indignada com a atitude de seus conselheiros, sua Majestade olhava
incrédula para a face de seu planejador mais querido, Zang Oso, ordenando uma
explicação imediata para aquela atitude traidora.
Ignorando
os chamados de sua líder, Zang virou-se para seus companheiros dando ordens
para tomarem de assalto a ala B e iniciarem aquilo que chamou de “Golpe da Colmeia”,
muito embora nem a Abelha-Rainha ou Geometris soubessem o significado daquele
termo. Virou-se para Geometris, um sorriso torto cruzando a face, e ordenou que
fosse colocada em quarentena imediatamente, com comando de extermínio agendado
para aquela mesma noite. Guardas Especiais tomaram Geometris pelas articulações
e asas, carregando-a rumo aos salões inferiores da Colmeia, enquanto ela se
debatia e aclamava por auxílio.
Na
Câmara-Real, Zang Oso fazia seu famoso discurso de vitória. Falava em altos
brados sobre como a transformação que promoveria nas próximas gerações tornaria a Colmeia
melhor; como a Abelha-Rainha era fraca ao confiar o trabalho de construção e
manutenção daquela fabulosa colônia à seres inferiores; como a manipulação
genética que ele, Zang, faria, tornaria a Colmeia imbatível. O monólogo parecia
interminável, interrompido ocasionalmente por um ou outro gemido da
Abelha-Rainha, prontamente respondido com bofetadas e xingamentos. Sua Majestade
encontrava-se completamente só, sentia-se abandonada pelas mesmas abelhas que
tanto trabalhou para criar e desenvolver. Via-se soterrada por um desespero
profundo.
Inexplicavelmente
o monólogo dera lugar a um curto silêncio, seguido de uma eclosão de vozes
enfurecidas. Zang e sua Majestade voltaram-se para a entrada da Câmara Real no
exato momento em que esta era tomada de assalto por um verdadeiro enxame de
operárias, o zumbido das asas se misturando ao estalar dos ferrões que ocasionalmente
encontravam o piso. Em movimentos rápidos, coordenados e precisos, o enxame
derrotou com facilidade a Guarda Especial, colocando Zang em posição
diametralmente oposta àquela na qual estava momentos antes. A Abelha-Rainha fora
libertada enquanto as operárias reuniam os planejadores, Zang entre eles, em
uma roda no centro do enxame, ferrões apontando perigosamente para seus
corações.
Em
uma reviravolta improvável, as abelhas operárias haviam retomado o controle da Colmeia
para sua líder, a Abelha-Rainha, enquanto esta olhava-as tomada por incredulidade. Quando
finalmente recuperou os sentidos, pediu para ter uma audiência com a líder
daquele grupo formidável, e foi surpreendida com a figura de
Geometris emergindo entre suas iguais. A Abelha-Rainha falou pela primeira vez
como se estivesse interagindo com outra Abelha-Rainha, a voz carregada de
espanto e admiração, questionando como os acontecimentos daquela noite haviam
sido possíveis.
De
modo tranquilo, Geometris humildemente requisitou a presença da Abelha-Rainha
aos andares inferiores, de modo que pudesse explicar e demonstrar com observações. Arrastaram-se entre os casulos
larvais, deparando-se com as unidades de refrigeração e condicionamento de ar,
onde Geometris pode apontar suas dúvidas sobre o projeto de concepção daquele
maquinário, e mostrar à sua Majestade as soluções práticas, simples e rápidas que
seu grupo havia encontrado.
Das
unidades de refrigeração e condicionamento de ar passaram aos habitáculos
larvais especiais. A Abelha-Rainha permaneceu calada durante toda a explicação,
enquanto Geometris lhe demonstrava os diversos obstáculos que haviam sobrepujado para poderem finalizar a ala B. Ao final, a Abelha-Rainha
virou-se para Geometris e lhe disse:
“Eu confiei todo o planejamento e
cronograma de tarefas desta Colmeia aos Planejadores, com fé nas
qualidades genéticas que apresentavam. Eu lhes pedi para planejar a construção
da ala B, maior do que a ala inicial, apenas para dar mais conforto e segurança
às larvas, mas não lhes pedi para elaborarem máquinas de refrigeração de ar ou
habitáculos especiais. Fui cega a ponto de não ver o que estavam fazendo, fui
tola a ponto de não perguntar, e fui insensível a ponto de
não me importar o suficiente para vir aqui e testemunhar o resultado dos meus
pedidos.
Sem vocês, minhas queridas
operárias, nada disso seria possível. Especialmente você, Geometris. Como
poderia retribuir o que fizeram por nossa Colmeia?”
A resposta de Geometris continua
permeando o pensamento da Abelha-Rainha e da Colmeia até os dias atuais. Suas
palavras, embora poucas, estavam carregadas de significado. Eram elas:
“Será que não seria melhor nos dar uma chance
para que possamos descobrir, por conta própria, através de nossas habilidades e
talentos, as melhores maneiras de servirmos uns aos outros?”
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