domingo, 3 de julho de 2016

Realidade Cinzenta

O alçapão estava entreaberto, ergueu-o com facilidade escorregando pela fresta aparente, e entrou na adega. Os olhos de Visus inundaram-se em êxtase no mesmo segundo que confirmaram o prêmio adquirido: uma adega inteira de vinhos espetaculares para degustar completamente à vontade. E o melhor, como era o costume entre os minúsculos Clurichauns:  Visus iria desfrutar daquele banquete absolutamente só. Mal conseguia conter a alegria naquele momento!
Com os olhos ainda turvos, saltitou entre os toneis cinzentos de modo a escolher as primeiras vítimas e, como de costume, perdeu o interesse em fazer jogos mentais rapidamente, atacando ferozmente a barrica a sua frente. O vinho escoava pela torneira e alcançava a boca ansiosa de Visus antes de tocar o solo, o líquido cinza claro refletido pela luz prata que pairava pelo pequeno alçapão.
A felicidade enchia a mente de Visus à medida que sua pequena barriga inflava com o líquido armazenado, um dos efeitos colaterais odiáveis daquela experiência rotineira. Visus lutou com todas as forças para suportar a enxurrada de hormônios que tomou conta de seu cérebro, vislumbrando os efeitos maravilhosos que sentiria em alguns minutos (fizera questão de manter um jejum de água apenas para potencializar os efeitos maravilhosos do elixir etílico).
Por fim, a felicidade deu lugar à esperada dor de cabeça, a sensação de borboletas voando no estômago, o gosto amargo na língua. Visus estava no paraíso, sua visão enrolava e acinzentava à medida que os efeitos ficavam mais intensos.
Depois do que pareciam horas de dores maravilhosas, enjôos dignos de travessias oceânicas e um pouco de sono (outro contratempo detestável dessa experiência), Visus recobrou a consciência e olhou em sua volta, tentando reconhecer o local onde estava.
O chumbo da madeira dos suportes contrastava com os toneis cinzentos e com o cinza claro do vinho derramado no chão, criando uma imagem conhecida ao pequeno Clurichaun, o mundo cinzento ao qual estava habituado. Pode constatar que estava na velha adega do senhor Otis, algo que aumentou seu mal-humor típico, pois sabia que os vinhos daquele velho Leprechaun eram da pior qualidade. Levantou-se com dificuldade e conseguiu sair do alçapão, apenas para dar de cara com o velho Otis e seu sobrinho, Oculus. Visus conhecia Oculus de vista, mas nunca havia ficado cara-a-cara com seu meio-primo, e não gostou da primeira imagem que teve de seu meio-parente.
Diferente de Visus, Oculus era um Leprechaun. Era mais baixo do que Visus (media algo em torno de 50cm), tinha um porte atlético e exibia um sorriso escandalosamente sincero, algo que irritava profundamente Visus e seus companheiros Clurichauns. Oculus trazia um cachimbo cinza chumbo pendurado nos lábios, vestia uma jaqueta cinza claro de couro e sapatos com fivelas, além de um horripilante chapéu de ponta prateado, também afivelado. Aquela indumentária causou antipatia e desgosto à Visus, piorando seu julgamento de seu meio-primo.
Como era de costume, Visus estava perdido em pensamentos acinzentados enquanto o velho Otis ralhava com ele e seu meio-primo Oculus o observava inquieto. Após muitas lições não ouvidas, palavras jogadas ao vento e algumas ameaças físicas, Visus viu-se livre da horrível presença do velho Otis, permanecendo aprisionado ao seu meio-primo, que passou a segui-lo e a observar atentamente suas ações.
Para tentar se desvencilhar de Oculus, Visus empregou a principal tática dos Clurichauns: reclamar sobre os grandes feitos dos Leprechauns. Era uma arma poderosa, afinal, poderia se encontrar defeito em todas as ações daqueles Leprechauns alegremente estúpidos, desde uma simples colheita de trevos até a principal atividade da vila, a caça aos tesouros. Visus sempre achara aquela atividade, em particular, extremamente monótona, visto que os pequenos Leprechauns empenhavam meses de trabalho para garantir um pequeno saco com moedas prateadas.
As reclamações sobre os grandes feitos deram lugar às indagações sobre o cotidiano. Visus atacava ferozmente aqueles simpáticos seres, a ira e o desprezo misturados nas palavras ácidas que ele proferia à Oculus, ridicularizando a forma alegre e viva que seus meio-parentes tinham de encarar aquela existência vazia.
Depararam-se com duas Leprechauns brincando com seus potes dourados. Visus comentou: “Veja Oculus, esses dois seres insignificantes trabalhando conjuntamente. Vê-se que se encontram em estado de euforia plena, como se nada mais importasse além dos estúpidos utensílios em suas minúsculas mãos. Aquela vestida de branco parece mais alegre, apenas se importando em observar sua amiga aventurar-se entra essas pedras, seu longo vestido negro esvoaçando por aí. Como algo minimamente bom pode sair dessa interação?!”
À princípio, Oculus achou aquele comentário muito estranho. Ele via as meninas cheias de vivacidade, em suas vestimentas tradicionais de Leprechaun, utilizando seu precioso tempo para realizarem as atividades primorosas que somente aquela idade poderia proporcionar. Virando-se para Visus, disse-lhe: “Querido parente, por favor, observe atentamente esta cena.”
Visus voltou-se para aqueles seres minúsculos, o tédio misturado ao desprezo corriam sua mente e seu instinto. Fez esforço para focar na atividade insignificante daquelas criaturas, apenas para ser cruelmente surpreendido: a Leprechaun de preto começou a retirar moedas de prata do pote de sua colega. Ao invés de retribuir tal ação com mesma intensidade, a colega de branco levantou-se calmamente, colocando-se entre sua amiga e seu valioso tesouro. Em seguida, argumentou com sua igual que aquela atitude não era aceitável, e demonstrou o sentimento gerado através de poucas palavras, poderosas mensagens.
Sua colega de preto assentiu por cada argumento, a feição sendo transformada por cada palavra, passando da ganancia e da soberba para a redenção e a compaixão. Humildemente devolveu as moedas de prata, apenas para ser recebida com um largo sorriso e um abraço sincero.
Algo na mente de Visus estava errado, aquilo era inconcebível! Como uma criatura pode abrir mão da maravilhosa solidão e da possessão para ter um simples sorriso de volta? Qual foi o ganho que aquela Leprechaun teve? Externou este último comentário à Oculus, tendo como resposta a seguinte frase: “É necessária muita coragem para se contrapor à seus inimigos, mas é necessária ainda mais coragem para se contrapor aos seus amigos.”
Foi como se uma erupção de emoções tivesse estourado na mente de Visus, todas agonizantemente felizes e encantadoras. Inicialmente Visus fez um esforço hercúleo pra não dar atenção àquele mar de sentimentos, mas foi vencido ao abrir os olhos.
Visus não acreditava no que via, era absurdamente louco demais para sua mente. Via algo mais do que o mundo cinzento que sempre o cercou. Era loucura, sabia, afinal aquele mundo sempre fora composto por um degradê cinzento. Mas aquela cena marcou-o profundamente, algo que nunca esperara sentir: as duas Leprechauns trajavam casacos verdes, uma tendo um tom um pouco mais claro do que o da colega, com sapatos avermelhados recobertos por uma fivela dourada em cinta marrom. O pigmento de suas peles passara daquele cinza-claro para um rosa-salmonado, refletido intensamente pela luz solar.
Sua mente discorria em pensamentos loucos tentando alcançar alguma compreensão sobre aquela situação. Não entendia como aquele mundo poderia existir, ou mesmo, como sua mente havia se tranformado daquela forma. Olhou ao redor, e cada nova imagem que encontrava seus olhos vibravam com as mais lindas cores, os mais vívidos tons. Viu o sol dourado iluminar o pedaço de terra marrom em seus pés, viu as casas dos seus meio-parentes Leprechauns, um degradê que ia de um intenso azul-celeste para um verde-limão. A jaqueta de couro, outrora cinza claro, passara para um verde-bandeira magnífico, que combinava muito bem com os sapatos verde-musgo afivelados (a fivela trazia um trevo verde-limão adornado). A barba em seu rosto passara do pálido cinza tradicional para um vermelho vibrante, e até aquele cachimbo transformara-se em uma verdadeira obra prima feito de raiz de roseira.
Visus estava incrédulo, seu mundo fora bagunçado em apenas uma ação, e pior, uma ação que ele sempre considerou desprezível. Seu meio-parente Oculus olhava-o com aquele familiar sorriso nos lábios, o que intrigou Visus e o levou a questioná-lo sobre as razões por trás daquela louca transformação. Oculus disse-lhe:
“Visus, você passou a vida como um Clurichaun, isolado e ávido por bebidas, dores e solidão. A falta de motivação para se engajar em relações frutíferas por conta de valores pessoais levou-o a ver todos como inimigos, sedentos por todas as posses e alegrias que você havia arduamento acumulado. Não demorou muito para tornar-se amargo, mal-humorado, ranzinza e, claro, cada vez mais só.
 No entanto, essa visão acabou privando-o de aventuras explêndidas, de ensinamentos valiosos e de choques de valores com seus iguais. Como você vê os acontecimentos de hoje?”

Depois de muitos minutos pensando, Visus respondeu:
“Não importa que o ser seja meu amigo ou inimigo. O importante é que todo ser pode ser meu professor.”
Visus olhou para baixo, e viu seu antigo sapato negro transformar-se no belo sapato verde-musgo afivelado. Sua blusa cinza rasgada dera lugar a uma suntuosa jaqueta verde-bandeira. Colocou as mãos no queixo esguio, apenas pra ser surpreendido com uma espessa barba. A antiga boina carcomida deu lugar ao chapéu verde afivelado.
De Clurichaun passou a Leprechaun, o mal-humor deu lugar a alegria contagiante, cada nova relação trazendo mais tonalidades para aquela louca realidade. Seu mundo cinzento fora recoberto por um degradê multi-colorido. Visus sentia-se, enfim, pleno.

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