O alçapão estava entreaberto, ergueu-o com
facilidade escorregando pela fresta aparente, e entrou na adega. Os olhos de
Visus inundaram-se em êxtase no mesmo segundo que confirmaram o prêmio
adquirido: uma adega inteira de vinhos espetaculares para degustar
completamente à vontade. E o melhor, como era o costume entre os minúsculos
Clurichauns: Visus iria desfrutar
daquele banquete absolutamente só. Mal conseguia conter a alegria naquele momento!
Com os olhos ainda turvos, saltitou
entre os toneis cinzentos de modo a escolher as primeiras vítimas e, como de
costume, perdeu o interesse em fazer jogos mentais rapidamente, atacando
ferozmente a barrica a sua frente. O vinho escoava pela torneira e alcançava a
boca ansiosa de Visus antes de tocar o solo, o líquido cinza claro refletido
pela luz prata que pairava pelo pequeno alçapão.
A felicidade enchia a mente de Visus
à medida que sua pequena barriga inflava com o líquido armazenado, um dos
efeitos colaterais odiáveis daquela experiência rotineira. Visus lutou com
todas as forças para suportar a enxurrada de hormônios que tomou conta de seu
cérebro, vislumbrando os efeitos maravilhosos que sentiria em alguns minutos
(fizera questão de manter um jejum de água apenas para potencializar os efeitos
maravilhosos do elixir etílico).
Por fim, a felicidade deu lugar à
esperada dor de cabeça, a sensação de borboletas voando no estômago, o gosto
amargo na língua. Visus estava no paraíso, sua visão enrolava e acinzentava à
medida que os efeitos ficavam mais intensos.
Depois do que pareciam horas de
dores maravilhosas, enjôos dignos de travessias oceânicas e um pouco de sono
(outro contratempo detestável dessa experiência), Visus recobrou a consciência
e olhou em sua volta, tentando reconhecer o local onde estava.
O chumbo da madeira dos suportes
contrastava com os toneis cinzentos e com o cinza claro do vinho derramado no
chão, criando uma imagem conhecida ao pequeno Clurichaun, o mundo cinzento ao
qual estava habituado. Pode constatar que estava na velha adega do senhor Otis,
algo que aumentou seu mal-humor típico, pois sabia que os vinhos daquele velho
Leprechaun eram da pior qualidade. Levantou-se com dificuldade e conseguiu sair
do alçapão, apenas para dar de cara com o velho Otis e seu sobrinho, Oculus.
Visus conhecia Oculus de vista, mas nunca havia ficado cara-a-cara com seu
meio-primo, e não gostou da primeira imagem que teve de seu meio-parente.
Diferente de Visus, Oculus era um
Leprechaun. Era mais baixo do que Visus (media algo em torno de 50cm), tinha um
porte atlético e exibia um sorriso escandalosamente sincero, algo que irritava
profundamente Visus e seus companheiros Clurichauns. Oculus trazia um cachimbo
cinza chumbo pendurado nos lábios, vestia uma jaqueta cinza claro de couro e
sapatos com fivelas, além de um horripilante chapéu de ponta prateado, também
afivelado. Aquela indumentária causou antipatia e desgosto à Visus, piorando
seu julgamento de seu meio-primo.
Como era de costume, Visus estava
perdido em pensamentos acinzentados enquanto o velho Otis ralhava com ele e
seu meio-primo Oculus o observava inquieto. Após muitas lições não ouvidas,
palavras jogadas ao vento e algumas ameaças físicas, Visus viu-se livre da
horrível presença do velho Otis, permanecendo aprisionado ao seu
meio-primo, que passou a segui-lo e a observar atentamente suas ações.
Para tentar se desvencilhar de Oculus,
Visus empregou a principal tática dos Clurichauns: reclamar sobre os grandes feitos dos Leprechauns.
Era uma arma poderosa, afinal, poderia se encontrar defeito em todas as ações
daqueles Leprechauns alegremente estúpidos, desde uma simples colheita de
trevos até a principal atividade da vila, a caça aos tesouros. Visus sempre
achara aquela atividade, em particular, extremamente monótona, visto que os
pequenos Leprechauns empenhavam meses de trabalho para garantir um pequeno saco
com moedas prateadas.
As reclamações sobre os grandes
feitos deram lugar às indagações sobre o cotidiano. Visus
atacava ferozmente aqueles simpáticos seres, a ira e o desprezo misturados nas
palavras ácidas que ele proferia à Oculus, ridicularizando a forma alegre e viva
que seus meio-parentes tinham de encarar aquela existência vazia.
Depararam-se com duas Leprechauns
brincando com seus potes dourados. Visus comentou: “Veja Oculus, esses dois
seres insignificantes trabalhando conjuntamente. Vê-se que se encontram em
estado de euforia plena, como se nada mais importasse além dos estúpidos
utensílios em suas minúsculas mãos. Aquela vestida de branco parece mais
alegre, apenas se importando em observar sua amiga aventurar-se entra essas
pedras, seu longo vestido negro esvoaçando por aí. Como algo minimamente bom
pode sair dessa interação?!”
À princípio, Oculus achou aquele
comentário muito estranho. Ele via as meninas cheias de vivacidade, em suas
vestimentas tradicionais de Leprechaun, utilizando seu precioso tempo para
realizarem as atividades primorosas que somente aquela idade poderia
proporcionar. Virando-se para Visus, disse-lhe: “Querido parente, por favor,
observe atentamente esta cena.”
Visus voltou-se para aqueles seres
minúsculos, o tédio misturado ao desprezo corriam sua mente e seu instinto. Fez
esforço para focar na atividade insignificante daquelas criaturas, apenas para
ser cruelmente surpreendido: a Leprechaun de preto começou a retirar moedas de
prata do pote de sua colega. Ao invés de retribuir tal ação com mesma
intensidade, a colega de branco levantou-se calmamente, colocando-se entre sua
amiga e seu valioso tesouro. Em seguida, argumentou com sua igual que aquela
atitude não era aceitável, e demonstrou o sentimento gerado através de poucas
palavras, poderosas mensagens.
Sua colega de preto assentiu por
cada argumento, a feição sendo transformada por cada palavra, passando da
ganancia e da soberba para a redenção e a compaixão. Humildemente devolveu as
moedas de prata, apenas para ser recebida com um largo sorriso
e um abraço sincero.
Algo na mente de Visus estava
errado, aquilo era inconcebível! Como uma criatura pode abrir mão da
maravilhosa solidão e da possessão para ter um simples sorriso de volta? Qual
foi o ganho que aquela Leprechaun teve? Externou este último comentário à
Oculus, tendo como resposta a seguinte frase: “É necessária muita coragem para
se contrapor à seus inimigos, mas é necessária ainda mais coragem para se
contrapor aos seus amigos.”
Foi como se uma erupção de emoções
tivesse estourado na mente de Visus, todas agonizantemente felizes e
encantadoras. Inicialmente Visus fez um esforço hercúleo pra não dar atenção
àquele mar de sentimentos, mas foi vencido ao abrir os olhos.
Visus não acreditava no que via, era
absurdamente louco demais para sua mente. Via algo mais do que o mundo cinzento
que sempre o cercou. Era loucura, sabia, afinal aquele mundo sempre fora
composto por um degradê cinzento. Mas aquela cena marcou-o profundamente, algo
que nunca esperara sentir: as duas Leprechauns trajavam casacos verdes, uma
tendo um tom um pouco mais claro do que o da colega, com sapatos avermelhados
recobertos por uma fivela dourada em cinta marrom. O pigmento de suas peles
passara daquele cinza-claro para um rosa-salmonado, refletido intensamente pela
luz solar.
Sua mente discorria em pensamentos
loucos tentando alcançar alguma compreensão sobre aquela situação. Não entendia
como aquele mundo poderia existir, ou mesmo, como sua mente havia se
tranformado daquela forma. Olhou ao redor, e cada nova imagem que encontrava
seus olhos vibravam com as mais lindas cores, os mais vívidos tons. Viu o sol
dourado iluminar o pedaço de terra marrom em seus pés, viu as casas dos seus
meio-parentes Leprechauns, um degradê que ia de um intenso azul-celeste
para um verde-limão. A jaqueta de couro, outrora cinza claro, passara para um
verde-bandeira magnífico, que combinava muito bem com os sapatos verde-musgo
afivelados (a fivela trazia um trevo verde-limão adornado). A barba em seu
rosto passara do pálido cinza tradicional para um vermelho vibrante, e até
aquele cachimbo transformara-se em uma verdadeira obra prima feito de raiz de
roseira.
Visus estava incrédulo, seu mundo
fora bagunçado em apenas uma ação, e pior, uma ação que ele sempre considerou
desprezível. Seu meio-parente Oculus olhava-o com aquele familiar sorriso nos
lábios, o que intrigou Visus e o levou a questioná-lo sobre as
razões por trás daquela louca transformação. Oculus disse-lhe:
“Visus, você passou a vida como um
Clurichaun, isolado e ávido por bebidas, dores e solidão. A falta de motivação
para se engajar em relações frutíferas por conta de valores pessoais levou-o a ver
todos como inimigos, sedentos por todas as posses e alegrias que você havia
arduamento acumulado. Não demorou muito para tornar-se amargo, mal-humorado,
ranzinza e, claro, cada vez mais só.
No entanto, essa visão acabou privando-o de
aventuras explêndidas, de ensinamentos valiosos e de choques de valores com
seus iguais. Como você vê os acontecimentos de hoje?”
Depois de muitos minutos pensando,
Visus respondeu:
“Não
importa que o ser seja meu amigo ou inimigo. O importante é que todo ser pode ser meu
professor.”
Visus olhou para baixo, e viu seu
antigo sapato negro transformar-se no belo sapato verde-musgo afivelado. Sua
blusa cinza rasgada dera lugar a uma suntuosa jaqueta verde-bandeira. Colocou
as mãos no queixo esguio, apenas pra ser surpreendido com uma espessa barba. A
antiga boina carcomida deu lugar ao chapéu verde afivelado.
De Clurichaun passou a Leprechaun, o
mal-humor deu lugar a alegria contagiante, cada nova relação trazendo mais
tonalidades para aquela louca realidade. Seu mundo cinzento fora recoberto por
um degradê multi-colorido. Visus sentia-se, enfim, pleno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário